O andor tinha três laços, e representava a torre de Agarêz. Bofetada dos de Donelo aos brios do povo, por causa dum relógio que já fez a infelicidade de muita gente. Apesar de milhentos peditórios e rifas a seu favor, nunca chegou a ser comprado. Daí a polvorosa que se levantava sempre que alguém mexe na ferida. E o prepósito era precisamente esse: acirrar. Muito em segredo, a bisarma foi armada lá na terra, e S. Brás metido no sítio do mostrador. Francamente!
A procissão sai da igreja às dez e meia, e atravessa Agarez antes de meter pela serra acima a caminho da ermida. Mas em vez de se apresentarem a horas devidas, como os demais, não senhor: só quando ela passava em frente do cruzeiro, é que os de Donelo deram o sinal de vida.
Roberto, assim que ouviu estoirar os morteiros anunciadores daquela chegada provocadora, correu perto do palio a saber ordens do Manuel da Tia, principal mordoma, que pagava uma das varas.
– Aí vêm eles… – disse.
– Deixa-os vir… – respondeu o outro, a enxugar a testa. – Não se lhes liga importância… Que sigam atrás, se quiserem. E, conforme cantarem, dançamos nós…
– Calma! – Recomendou o senhor prior, que, entre dois acólitos – o padre Rego de Paços e o padre Capão de Covas – , levava o santo lenho encostado ao peito.
Os de Donelo entraram pelo caminho velho. O andor, descomunal, bandeava que parecia um castanheiro em Novembro. Só por meio de cordas seguras por quatro homens evitava que tombasse.
O povo de fora, alheio ao acinte, olava a maravilha assombrado. Os de Agarêz mordiam-se de raiva.
A procissão ia andando. A música de Magueija, que revezava com a de Constantim, tocava o Queremos Deus. As zeladoras andavam numa fona para nos manterem na forma.
O encontro foi no Eiró. Como um odre – o vinho de Donelo é trepador – , o farsola do Rodrigo adiantou-se alguns passos dos companheiros e, sozinho no meio da estrada, ergueu as mãos e gritou:
– Pare a procissão!
O Animal do Jaloto, que levava o estandarte e abria o cortejo, titubeou, pousou o mastro, e ficou ali a mastigar em seco, lorpa de todo. As figuras foram estacando também, claro.
O Roberto que, entretanto, entrara na venda do Ti Faustino a molhar a garganta, quando voltou e deu com os olhos no patife a impedir o caminho, perdeu a cabeça. Dum salto, chegou-se ao do pendão e berrou-lhe:
– Ó meu filho da puta, quem te mandou parar?
– Eu! – fanfarronou o de Donelo.
– Anda para diante, cagão dos infernos! Tens medo dum chafedes daqueles?
– Pare a procissão! – teimou o outro. – Queremos entrar.
– Metam-se atrás, se quiserem.
– E por muito favor!
– Os cães é que andam à trela…
E armou-se a trovoada. Siga, não siga, torna que deixa, e ainda o Rodrigo ia a meter a mão no bolso a sacar da mauser, já tinha as tripas de fora.
Os de Donelo, mal viram cair o de lá, ficaram cegos: ergueram os varapaus e começaram a eito.
Gritaria, correrias, as varas do pálio transformadas em estadulhos, e o próprio padre Capão, de pistola em punho, a defender a pele e a meter os mais assanhados na ordem.
Não morreu ninguém, felizmente, mas chegou para afligir. S. Brás ficou sem um braço, e Santa Ana, que vinha no andor de Arca esquadrilhada de todo. O Chichanas, tal mocada levou na cabeça, que teve de ser trepanado. Nunca mais regulou bem.
A procissão continuou, embora desmantelada, e tudo correu normalmente, a seguir…”
— O Terceiro Dia da Criação do Mundo – Miguel Torga
Que lugar fantástico, adoro cenas que promovam a cultura portuguesa!
Tenho estado precisamente a ler A criação do Mundo de Miguel Torga, e logo nas primeiras páginas uma personagem (o Ti Manuel Serralheiro) é mencionado como aquele que sabe jogar o jogo do pau.
Que trabalho fantástico o teu, tenho de questionar mais gente acerca desta modalidade lusitana!
Enfim eu não tenho muito jeito pois ser português é difícil!
Desejo-te as maiores felicidades para 2018 e todo o sempre,
Fernando Couto