(…)Entrementes, o cavalo, montado pelo guarda do Vitorino recuando, para não pisar um homem, derrubou a Eufrásia.
A Eufrásia, irada; esbravejou :
— Arre, que é bruto.
Um outro, também criado, pimpão, afamado jogador de pau, varredor de feira, encostado ao cajado, retorquiu, friamente zombeteiro — Não enxovalhes a rainha.
Da multidão, que ria fazendo coro à moça, gritou terceiro:
— Olha que ela tem o pai alcaide.
— E o marido deputado — mal disse o primeiro, porque as silabas finais extinguiram-se, ficaram abafadas debaixo da lençada de tremoços, que a Eufrásia chapou na boca do atrevido.
Uma gargalhada geral açulou o rapaz, obrigou-o a levantar o varapau, que encontrou no ar o cajado dum cantoneiro municipal, empurrado pelo Xavier para defender a Eufrásia.
Os paus pesados, ferrados, cruzaram-se e logo se separaram, defendendo as cabeças, agredindo em pontoadas, descarregando-se em golpes, sempre aparados pelos dois, que saltavam para os lados, recuavam, avançavam, abrindo praça no meio do povo.
Suavam ás bagadas, sem chapéu, sem jaleca, caída na refrega, a camisa aberta, mostrando, a cobrir o peito, como coiraça, a cabeladura negra, hirsuta. Retesavam os músculos dos braços, acuavam para se defender, pinchavam para se alcançar. Calara-se a música e de todos os lados afluía gente, ávida de curiosidade, atropelando-se, pisando os mais fracos, formando grossa corrente, numa impetuosidade de fereza animal. Era uma revolução — todos se levantavam, todos corriam por ver correr, todos se empurravam porque se sentiam impelidos para o torvelinho da poeirada, para a mole da gente, para o inferno da vozearia. Por entre as lamurias, aflitivas, das mulheres, o choro das crianças, os aplausos, calorosos dos homens, ouvia-se a pancada, seca, rija, dos cacetes a medirem se, a chocarem-se.
O cantoneiro, perdendo terreno, foi de costas a duas mesas de capilé. Tiniam, feitos em pedaços, os vidros dos copos e das garrafas; chocalhavam, a rebolar nas pedras, as latas do açucar; tilintavam, a cair da gaveta desconjuntada, as moedas de cobre; e as vendedeiras, em choroso alarido, gritavam á del-rei.
O cantoneiro estacou sem terreno, cobriu-se com o pau, limitou-se á defesa. O outro atirou-lhe, e o cantoneiro levantou o cacete, aparando a pancada no ar, mas com o choque, foram-se-lhe a baixo os braços, derreados. E assim, descoberto, já não pôde livrar-se doutro golpe, certeiro, no meio da cabeça, aberta em brecha, a repuxar sangue.
Com o ferimento saiu da multidão um grito de aplauso, em que se expandia naturalmente o entusiasmo pela luta, a aclamaçâo da vitoria o interesse pelo jogo; em que se mediam dois dos melhores cacetes dos arredores, com partidários divididos, que, mais civilizados, teriam feito rendosas apostas pelo vencedor. Esse grito ressoou como um triunfo:— Eh! Zé!…
O Zé não se demorou em agradecimentos, voltou costas, abriu rua fazendo sarilho com o pau, saltou para dentro duma insua, e perdeu-se nas milharadas.
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Francisco Eduardo Solano de Abreu “Um anjo sem azas” (1907)