A Pátria – Guerra Junqueiro

Guerra Junqueiro

Tive castellos, fortalezas pelo mundo…
Não tenho casa, não tenho pão!…
Tive navios… milhões de frotas… Mar profundo,
Onde é que estão?… onde é que estão?!…
Tive uma espada… Ah, como um raio, ardia, ardia
Na minha mão!…
Quem m’a levou? quem m’a trocou, quando eu dormia.
Por um bordão ?!…
E tive um nome… um nome grande… e clamo e clamo.
Que expiação!
A perguntar, a perguntar como me chamo!…
Como me chamo?… Como me chamo ?…
Ai! não me lembro!… perdi o nome na escuridão!…
(…)
E eu desatei a rir, eu desatei a rir,
E três dias cantei com mais três noites a seguir!

Não dormia a rainha de me ouvir cantar…
Oh, loucura minha, desventura minha!
Cantigas são graças para não chorar…
Mandou-me prender, mandou-me enforcar.

Chegaram as tropas e eu, desarmado,
Zás! desbaratei-as com o meu cajado!

E puz-me a cantar! e puz-me a cantar!

Tremendo, a rainha disse então ao rei:
Emquanto o não matem não descançarei.
Com teus cavalleiros vae-m’o tu buscar,
Traz-m’o aqui de rastros para o degolar.

Veio o rei á frente d’um grande estadão,
Zás! desbaratei-o com o meu bordão!
É de temer, é de temer
Um doido varrido com um pau na mão!…

E sempre a cantar! e sempre a cantar!

“A Pátria” – Guerra Junqueiro, 1896

Era uma noite serena, mas triste e melancólica. A lua, a pálida rainha das sombras, só de vez em quando deixava ver a sua face prateada, espreitando pelas fisgas das nuvens que rolavam pelo firmamento além. Por toda a parte reinava um silencio profundo, verdadeiramente sepulcral, entrecortado apenas pelo latir dos cães no povoado e pelo grito agudo da coruja, esvoaçando á roda do campanário, atraida á lambuge do azeite das lâmpadas que bruchuleavam lá dentro em frente dos altares.

Pelas estreitas e sinuosas ruas da Feira caminhavam a essa hora apressados para casa alguns retardatários, abordoados a fortes varapaus e de revolver em punho para se defenderem dalgum mau encontro!

“A autonomia de Espinho e os protestos da villa da Feira” – 1900

 

O “Espreitador” na feira.

José Daniel Rodrigues da Costa, O “Espreitador”, deixa-nos aqui algumas das suas notas sobre a violência em feiras, a faca e varapau, no ano de 1818.

espreitador
É nesta mesma Feira, que hum homem tira a vida a um seu semelhante, porque lhe pisou hum pé com o cavalo em que ia.

É nesta mesma Feira, que fervem os cajados, e as cajadadas, por certos ciúmes, que tiveram três saloios , das suas Marias do Monte : e elas em ais, e suspiros metidas na briga. Ah bom Juiz da Ventena, que hás-de vir a ser senhor do grosso cordão de ouro, que uma delas traz ao pescoço, só por não ver o seu António entre os ferros d’ElRei.

É nesta mesma Feira , que hum grande rancho de tafues se mete em uma taberna, e mandam vir quanta carne de porco o taberneiro tem, saladas, e azeitonas, conservas, e vinhos novos mal cozidos, castanhas, e aguas pés de lavar pipas, e tudo se mete no bucho à força de muitas risadas; de sorte que ficam aquelas alminhas sem pena, nem gloria, despedindo de vez em quando insonsas graças à taberneira, e insulsos ditos picantes com seus atrevimentos vinhaticos. Desconfia o dono da casa: este leva com o copo na cara, daquela gente bem nascida, e mal criada. Impunha-se a faca, crescem os gritos. Um, que não é para ver sangue, porque não só desmaia a qualquer sangria, mas até sai para fora, quando tem matança de porco em casa, puxa da bolsa, e paga o gasto; custa dez mil reis a função Voltam todos para casa amparados uns pelos outros; e no outro dia hum é ungido, e o outro mal sentenciado pelo seu Medico. Que tanto pode toda aquela burundanga! Porém isto nasce de todos terem a morte por vizinha, e ninguém julgar, que mora na sua rua; que se assim não fosse, acautelar-se-ião mais as vidas dos perigos das boas feições.

“O espreitador do mundo novo : obra critica, moral, e divertida” – José Daniel Rodrigues da Costa, 1818

COUSAS D’ALDEIA

Rosa era uma muchacha de 19 anos, de estatura mediana, cara roliça e vermelha, olhos vivos, cabelo castanho, e um sestro namorador tão inveterado que as borboletas campesinas iam abrasar-se às dúzias naquela luz pérfida e oscilante. Quando eu a conheci andavam-lhe na cola dois mocetões bizarros: um filho do Damásio e o Luís da Santa. Como párrafo explicativo devia encabeçar neste ponto a genealogia dos meus heróis ; fabrique-a porém o leitor a seu modo, que me poupa a trabalhos sem detrimento do assunto.

Aconteceu um dia que a Rosa vinha da missa com o filho do Damásio; dizia-se por então que era ele o preferido. A romaria caminhava no mais amorável comprazimento. O céu estava azul, o ar sereno e embalsamado, as aves palreiras como nunca, e as flores namoravam-se de valado
para valado.

É fora de duvida que para aqueles dois corações o mundo exterior era de urna influencia incalculável; e eu sou dos que crêem, corno Victor Cousin, que o mundo exterior é que decide, em regra, do destino dos homens.

La terra, molle, lieta e dilettosa,
Simili a se gli abitator produce.

Imagine-se que ao saírem da azinhaga para a estrada que conduzia ao povoado, os dois deram de chapa com o Luís da Santa. Rosa enfiou, o filho do Damásio apertou com mais força o varapau ferrado ; enquanto que o outro se contentava em sorrir, mas com um riso torcido e amarelo que
era para dar calafrios.

Alguns dos rapazolas que por ali estavam fizeram monte a espera da trabuzana; felizmente as duas nuvens passaram sem descarga de fagulha, nem bateladas de pedrisco. Rosa continuava a caminhar, mas o braço tremia-lhe aconchegado ao braço predilecto. Nem mais urna palavra soltaram ; ao despedirem-se deram as mãos, olharam-se, cada um deles sentiu a vista anuviar-se-lhe de agua, e a voz do amante foi a única a balbuciar:

— Adeus, Rosa; até logo.

Ela pôs os olhos no chão, e foi-se a cismar para casa.

No sitio havia urna adega, cujo nome de guerra provinha do locatário. Chamavam-lhe a adega do Feliciano. Era lá que se congregavam os sarrabais contemporâneos, e que em melo das abluções e dos chistes ressoavam os descantes dos mais afamados improvisadores. A adega simbolizava o
outeiro dos bons tempos freiraticos. Um mote que se atirasse era colhido no ar por urna dezena de vates, a gritaria gemia, as vozes esganiçavam-se, a rima acudia pronta, os curiosos acotovelavam-se, os copos de vinho ferviam, berreiro entusiástico da matula coroava aquela cena, digna de um primoroso Renato.

No domingo em que sucedeu o encontro, a adega do Feliciano extravasava saloiada. Eram oito horas da noite. Uma causa extraordinária movia e impacientava aquela gente; a ansiedade debuxava-se em todos os rostos ; um ruído indecifrável e cavo repercutia-se ao longo do casarão enegrecido.

Mal que a guitarra do Villafranca soltou os primeiros arpejos, o sussurro foi-se desvanecendo a manso e manso, os ecos adormeceram por entre o vigamento, as respirações sofrearam-se, e o silencio da expectativa dominou os mais encabruados tagarelas.

O da guitarra estava a um canto da adega, os saloios em circulo, e no centro, fronteiros um ao outro, apareciam os vultos ameaçadores do Luís da Santa e do filho do Damásio. Era uma luta que se preparava.

Não sei se na historia dos trovadores há facto semelhante: dois amantes que se inspiram de amor e de zelos, e que pelejam arremessando cantigas.

Luís da Santa começou:

-O mar pediu a Deus peixes
Para dar aos pescadores,
Eu peço a Deus que me tire
Saudades dos meus amores.

Saudades sei que não matam,
Mas ralam a vida inteira;
Olha o sol que te não creste,
Rosa que estás na roseira.

A folha mais verde, verde,
Pôde também desbotar,
Quanto mais se a folha verde
Não quiser à sombra estar.

A cana do caniçado
Quebra se alguém lhe põe pé,
Eu também quebro cantando
Certo olhar de quem me vê.

O Luís da Santa calou-se. O auditório estava pendendo daqueles versos, entoados com urna voz sonora e vibrante, versos que a tristeza repassava, apesar da aparência fria do cantador.

A guitarra prosseguia nos seus harpejos. Todos os olhos se cravaram no filho do Damásio, e ele, firmando a mão esquerda sobre o balcão da adega, prorompeu deste modo:

– Eu hei de amar, hei de amar,
Hei de amar bem sei a quem;
Eu hei de amar ao meu gesto,
Nanja ao gosto de ninguém.

Ninguém me põe pé e quebra,
Antes que seja a cantar,
Nem há sol que a minha rosa
Possa as folhas desbotar.

Que te importa a ti que eu siga
Uma paixão que me arrasta?
Cada qual segue seu rumo;
Para mim é quanto basta.

Morde, morde, minha cobra,
No verde pé dessa flor;
Quem seu mau peito descobre
É de si mesmo traidor.

Ás ultimas palavras do filho do Damásio houve um murmúrio de aprovação que ciciou em todos os lábios. Luís da Santa quis retorquir, entoou urna quadra, vacilou no último verso, insistiu, mas a inspiração ia-se-lhe arrefecendo.

Só no fim, apoiando-se a um grosso cajado de marmeleiro, pôde sair-se com estes versos, que eram o derradeiro esforço de uma imaginação agonisante:

O rouxinol quando bebé
Canta logo de prazer,
Sabe Deus naquelas águas
Quantos mais não vão beber !

O insulto era frisante, e a poesia tornava-se ineficaz para rebate-o. Os circumstantes recuaram supondo inevitável conflito, enquanto o Vilafranca rogava a custo os dedos pela guitarra, corno quem tinha pouca vontade de os acompanhar nessa toada.

O filho do Damásio não cedia, contudo, às primeiras. Acima da luta brutal pairava a gloria poética. Queria pagar afronta com afronta. Verdade é que antes de encetar a cantiga deu ao corpo urna postura arrogante, mas o verso manava-lhe fácil e sereno, como se uma trovoada de cacetes não escurecesse já o horizonte. Encarou o Luís da Santa, correu o olhar pelo auditório, sorriu-se com a consciência da superioridade, e levantou a voz com desempache:

Vai-te lá, não me enfarrusques,
Disse a caldeira á certan ;
O rouxinol nunca bebe
No charco onde vive a rã.

Quanto mais a folha brinca,
Mais pode ao chão vir parar ;
Muita gente canta, canta,
Com vontade de chorar.

Ainda não fenecera o ultimo verso, e já o tumulto lavrava na adega e cá fora. Cada lapuz tomava bando pela causa. A lógica inflexível dos varapaus trazia em cada arroxada um silogismo perfeito. A proporção que as costelas se abolavam, que o reboliço crescia, que as pragas redemoinhavam, por outro lado vinha a razão alvorecendo e alumiando, para depois se assentar no seu trono orvalhado de sangue, que é onde a filosofia costuma quasi sempre assenta-la!

No outro dia, de toda aquela baralha desenfreada resurtiu o seguinte : Luís da Santa tinha a cabeça esmechada, Damásio três dentes de menos, o Vilafranca a guitarra partida, e quatro ou cinco labruscos acusavam-se de dores pelo corpo, as quais não eram certamente de reumatismo. Não pára aqui o romance; o melhor capitulo podia ter por epigrafe os dois conhecidos versos de Francisco I. Rosa, volteou corno uma grimpa, o que era sinal de vento novo. Quando o filho do Damásio foi procura-la achou-a tão festival e indiferente que o rapaz ficou banzado de todo.

Desiludido nas suas crenças de amante, de que dera testemunho com dois dentes molares e um canino, o filho do Damásio partiu, e foi-se por a cismar para o alto dos moinhos. Lembrou-lhe o descambar dali a baixo, o deixar-se colher por urna vela, enfim, o fazer milhões de disparates, quando viu passar pela azinhaga o seu rival Luís da Santa.

O coração deu-lhe um salto, mas destes saltos reais, em que se quebram cangas e apeiros. Sentiu-se livre. Desceu do monte a passo cheio, dirigiu-se ao Luís, agarrou-o, aferrolhou-o ao peito, esteve assim um momento, e ao cabo, pondo as duas robustas mãos sobre os ombros do interlocutor, exclamou com a inflexão de quem se salva:

— Ó Luís, olha que nós somos amigos. Aquilo foi o demo que nos tentou… e por ma pega. Bem mo dizias tu ontem :

O rouxinol quando bebe
Canta logo de prazer:
Sabe Deus naquelas aguas
Quantos mais não vão beber.

— Está dito, rapaz, acudiu o Luís com gesto prazenteiro; saudades não comem gente, e o que lá vai, lá vai. Temos de festejar as pazes na adega do Feliciano.

— E que venha toda a malta, e o Vilafranca que traga instrumento novo. Queremos cantar ao desafio.

— Como ontem? perguntou o da Santa, com um risinho melancólico.

— Não, Luís, que as mulheres não valem três dentes da boca.

Nessa noite houve festança na adega. Feliciano andava numa dobadoira. Copo cheio, copo vazio, torneira fechada, torneira aberta; agora do tonel, logo da pipa, mais tarde do odre, tudo se provava, tudo se aplaudia, e tudo se abismava naquele sorvedouro sem fundo As unhas do Vilafranca saltitavam no cordame, e os improvisos ressoavam contínuos. Rosa desprendera-se do amante, como é costume de todas as rosas desprenderem-se do tronco.

Um dia o humilde narrador desta verídica historia encontrou-a enchendo o cântaro na fonte. Tinham passado dois meses do ocorrido.

— Então, flor, temos ao certo amores novos?

— Que se lhe há de fazer? Esta agua que corre não é só para encher a minha bilha!

Quando me disse isto pôs o cântaro à cabeça, e com um donaire adoravel foi-se, cantarolando, ao longo da azinhaga.

“Contos da sesta – Coisas d’aldeia”, Eduardo Augusto Vidal – 1870

Zé Cristo

O clã dos “Cristos” metia respeito: o Manel, na casa dos vinte e oito anos, o João, com menos dois, o Chico, recém vindo da tropa, cujo tempo passara, na maior parte, no forte da Graça, em Elvas, e o ganapo – o Zé – a atingir os dezoito anos, dentro de dias.

Todos iam acima do metro e oitenta.

Não havia festa, ou descante, onde os quatro irmãos não aparecessem, com ar provocador e, por vezes, munidos dos respectivos paus – que punham sobre as omoplatas, formando uma cruz, com os braços –.

Daí derivava, ao que se pensa, a alcunha que ostentavam, vinda já dos seus antepassados e que não ligava ao apelido da família: Alexandre.

Os paus constituíam um verdadeiro adereço; eram vulgaríssimos, na época.

Tratava-se de uma vergôntea de marmeleiro, bem seleccionada e seca longe do sol, com uns dois côvados, ou uma vara – o côvado media 66 cm e a vara 11 decímetros –.

Conhecemos apenas duas utilidades a estes paus, que qualquer homem que se prezasse exibia nas feiras e mercados: para conduzir o gado, ou para se apoiar.

Uma outra utilidade – como padrão – era pouco aplicada.

As zaragatas eram, de facto, o terreno mais vulgar para o uso do pau.

Nas aglomerações e festanças, dos meios rurais, disputava-se o jogo do pau, mas o verdadeiro uso do mesmo era no costado de um qualquer adversário, quando o ensejo tal proporcionasse.

Todavia este e outros costumes foram-se extinguindo, devido à proliferação da GNR e firmeza de Regedores e Cabos de Ordens, nome por que na região eram designados os Juízes de Paz.

Os magotes de rapazes, que andavam de aldeia em aldeia, nos bailes, descantes e festas, deixavam os paus escondidos de forma que pudessem dispor deles, em poucos minutos, se necessário fosse.

Nos torneios de jogo de pau disputavam-se prémios e honrarias, de que qualquer homem se prezava.

Ouvia-se contar, aos mais velhos, que no descante do casamento da mãe do Ti’Chico “Manajeiro”, houve uma zaragata, provocada pelos rapazes de Alcaravela, em que foram partidas mais de vinte cabeças e imobilizados mais de uma dúzia de braços.

Talvez, por isso, “o Manajeiro”, era o maior amigo da ordem e do respeito.

Quase todos os “Cristos” tinham já passado pelas companhas do Ti’Chico; esse ano ia o Zé Cristo, como aprendiz do terceiro ano.

Passaria à condição de camarada no final da safra e, no ano seguinte, teria já todas as condições de “oficial”, nomeadamente soldada por inteiro e direito a prémios.

Os aprendizes recebiam, por norma, duas décimas, no primeiro ano; 3 décimas, no segundo e três quartas, no terceiro ano.

No quarto ano, ou não eram mais chamados para as companhas, ou eram-no, na qualidade de camaradas.

O Zé Cristo era teso, caladão e ligeiramente vesgo – chamavam-lhe “zanaga”-.

Era o mais alto da companha e em largura de ombros, não havia quem se lhe comparasse.

Falava pouco, mas, em contrapartida, comia por três ou quatro.

A trabalhar, uma máquina; os moços, que seguiam no seu encalço, viam-se e desejavam-se para atar os molhos e fazer os rolheiros, atrás dele.

Um dia, um dos moços, o Benvindo, chamou-lhe “caga-molhos”, pois não conseguia manter limpa a área de corte do Zé Cristo.

Tanto bastou para que o Zé pousasse a foice e, pegando pelo atilho das calças elevasse o garoto bem alto, no cimo do longo braço e parecendo mostrar um troféu a toda a companha.

Depois, pô-lo, cuidadosamente, no chão, tornou a pegar na foice e começaram a amontoar-se, atrás dele as gavelas ceifadas.

Sorrateiramente, como era seu hábito, o Ti’Chico, fez sinal ao Manel Carolo, em cujo grupo estava o Zé Cristo, e afastou-se da frente de corte, para que o Lopes e o Duque, camaradas que iam ao lado do rapaz, normalizassem a situação.

Uns minutos depois, fitou o Zé Cristo nos olhos – que nessa altura ficaram mais vesgos e baixos – e apenas disse: é a primeira e a última vez que, nesta companha, alguém falta ao respeito; se voltas a fazer alguma das tuas, racho-te!…

Aqui, somos todos homens, e no que ao respeito diz respeito, até os moços o têm de ter.

Este caso foi edificante.

Muito ao modo como o Ti’Chico costumava actuar; batia pouco, mas, quando o fazia, era inexorável e altamente eficaz.

No resto dos dias da companha não houve mais qualquer altercação. E voltaram todos mais amigos que quando partiram.

No fim da companha, o manajeiro reuniu os chefes de grupo e disse o que pensava fazer com as soldadas.

Tudo esteve de acordo.

O Ti’Chico dividiu a totalidade do dinheiro em 40 partes e atribuiu uma a cada um dos trinta oficiais.

As dez que ficaram – as dos aprendizes –, eram para os cortes, cujas quantias iriam fazer os prémios para compensar o mérito de cada um.

Nessa altura tomou a palavra e chamou o Zé Cristo, entregando-lhe uma maquia igual à dos camaradas, dizendo que mostrou corpo, disciplina e trabalho como os melhores, e que a justiça deve sempre ser praticada.

Ninguém se opôs.

Foi a primeira vez, nas memórias das companhas, que um aprendiz foi promovido em pleno campo de trabalho.

Pela justiça da decisão, o Ti’Chico “Manajeiro”, como sempre ficou conhecido e será lembrado, ainda hoje, é apontado como exemplo de capacidade de liderança e espírito de justiça.

Quanto ao Zé Cristo, aceitou as palavras sábias do “mestre” e não consta que alguma vez mais se tenha envolvido em desavenças.

Publicada por Jose Marques Valente em
http://historiasdegentesimples.blogspot.pt/2013/06/ze-cristo.html

Choupa de aço de mais de palmo.

O marchante, arrancando o pau, desenroscou um canudo de cobre que escondia uma choupa de aço de mais de palmo. Manuel Baptista sacou de um dos coldres uma pistola, e esperou sem lhe erguer o cão; o destemido ébrio floreando o longo pau de lódão fez-lhe uma pontoada ao peito, da qual o salvou o cavalo empinando-se. O cirurgião engatilhou e disparou à cabeça de Joaquim Roxo, que instantaneamente caiu de borco sobre o pescoço da mula.

“O Degredado”– Camilo Castelo Branco ~ 1877

Camilo a pau e fogo.

Uma  noite,  quando  um  dos  padres  recolhia,  enxergou  um  vulto  esbatido  no escuro do  mural  que  formava  o tapume  da  eirada sua casa,  e  lobrigou  por entre a sebe o alvejar de uma saia a fugir. Cresceu sobre o vulto com o pau em programa  de  bordoada, e  ouviu  o  estalido  do  peno  de  pistola.  Susteve  a pancada e perguntou:
— Quem está aí?
— Sou o Belchior Bernabé.
— Que fazes aí?
— Nada, Sr. Padre João.
— Porque te escondeste?
— Não faço mal a ninguém, Sr. Padre João.
— Mas engatilhaste uma arma de fogo! — E acercou-se dele arremetendo.— Que queres tu desta casa, enjeitado? Servem-te as minhas sobrinhas…? — E  atirou-lhe um epíteto que definia a natureza da mãe incógnita.
—Sr. Padre João, olhe que, se me bate, eu, bem me custa, mas… atiro-lhe. Siga o seu caminho e deixe estar quem está quieto e manso. Padre João Ruivo sobraçou o marmeleiro ferrado e murmurou:
—Tomo-te à minha conta, brejeiro!
E passou avante.

“Novellas do Minho – O comendador“ -Camilo Castelo Branco

personagens jogadores de varapau (3º)

No seguimento de um post anterior, ficam aqui mais alguns personagens jogadores de varapau, na literatura portuguesa:

O morgado das Perdizes
– Deixem se de contos – continuou o padre – eles fazem o que querem porque sabem que não há um homem de coragem que se ponha à frente do povo….

-Lá isso é que é verdade.

-Já não há homens para as ocasiões.

O morgado das Perdizes que tinha presunções de valente e gabava se de ter varrido feiras a varapau espinhou se com estas palavras e protestou dizendo: -Então julgam vocês que eu se me der para ai, não vou ao cemitério, eu só, e ponho tudo aquilo em cacos? hein?

“A morgadinha dos Canaviais” Julio Dinis – 1868


O Trinta
Em aparecendo o Trinta com o seu varapau de marmeleiro, os desordeiros, que sabiam a coragem e perícia com que ele o manejava, sossegavam ou fugiam.

“Outros tempos, ou Velharias de Coimbra 1850 a 1880” – Augusto d’Oliveira Cardoso Fonseca 1911


Manuel Gandra
Moço e robusto, airosamente aprumado, com o sangue a reçumar-lhe em cores nas faces, uma alegria vivida nos olhos garços, destro ao jogo do pau e languido á guitarra, impunha-se aos homens pela valentia e as mulheres adoravam-no pedindo-lhe tonadilhas e fados tristes.

“Rei negro : romance barbaro” – Henrique Coelho Neto – 1912


O sr. Gomes
Todos na Aldeia o estimavam, porque todos Ihe deviam favores, e além de o estimarem, respeitavam-no porque ele não era mole de queixos. Um ano, na feira de Castro, numa barraca de bacalhau frito, pegou-se de razoes com um valentão de Almodôvar, e como das palavras passassem aos atos, zurziu o homem e mais uns quatro fulanos que o acompanhavam, pondo-os em tal estado que nenhum pode sair dali pelo seu pé.

Era muito desembaraçado, e com um bom cacete nas unhas era homem para varrer uma feira. Felizmente que os homens como o sr. Gomes, valentes no mais rigoroso significado da palavra, nunca são desordeiros nem provocadores; aceitam as situações que Ihes criam; não voltam a cara ao perigo que os ameaça, e quando precisam afirmar os seus brios e pundonor fazem-no a dentro da justa medida, como que procurando que a legitima defesa não toque as raias da agressão desnecessária.

“Scenas da vida” Brito Camacho, 1900


D. Lopo
Segundo a religiosa praxe da época, aprendera D. Lopo na sua mocidade, a jogar o pau, no que fora sempre insigne, e até temido.

“Viver para sofrer. Estudos do coração.” José Barbosa e Silva – 1855


Joaquim do Adro e Manuel da Portela
Nascidos no mesmo ano, Joaquim, do Adro, e Manuel, da Portela, tinham crescido juntos, ligados sempre por, até então, jamais quebrantada amizade.(…) Mais tarde, no tempo das verduras de rapazes, bem precavido devia andar quem quisesse mal a qualquer delles, pois, quando apenas julgava encontrar um, achava com certeza dois marmeleiros,
que consideravam a solidariedade como ponto de religião, tanto no ataque como na defesa.

“Contos – A sentença da Tia Angélica” Pedro Ivo – 1896

Os da Cerda e os da Rabiosa

Estava aberta a contenda entre os da Cerda e os da Rabiosa. Ninguém podia iludir o propósito, em que uns e outros, tinham vindo, de se pegarem. O conhecido improvisador Santinho, era um velho magro, todo barbeado como clérigo, e calvo como um sacristão. O seu beiço fino e irónico, o seu olho, redondo e vivaz, como que entrava pelas pessoas. Empalideceu sorrindo diante do repto da Rita ; tirou do bolso da vestia um lenço de paninho com que limpou o nariz e os lábios para ganhar tempo; avançou adiante o pé esquerdo e encostou- se à sua vara de marmeleiro, delgada e imprópria para chibancias de bordoada. Depois de tirar longa expiração, respondeu:

S’a minha chieira é grande,
a tua é presumpçao;
tira-te p’ra lá herege,
que não ouviste o sermão.

— E é verdade que não ouviu ! — confirmou a moleira — Mas a rapariga chegou depois, tio Zé!…
Réplica da Rita :

O sermão foi bem bonito,
ouvi-o o anno passado ;
se tu ouvistes melhor,
é qu’estavas precisado.

O cantador:

Vens de longe rapariga,
com fama de grande spanto;
‘stá na tua frente um home,
que se chama o Zé Santo.

A cantadeira, logo a seguir:

Se o teu nome é de santo,
tua cara é de fuinha;
deixa-te lá de cantigas,
vae resar a ladainha.

A gargalhada foi estridulosa e ampla. O rapazio pendurado nos fortes galhos da carvalheira, aplaudiu com um gritado «viva à Rita!». O valor do gabo fora acrescentado pela expressão gaiata das caras travessas, que apareciam por entre a folhagem. O velho, assim chamado à liça, deu uma sacudidela ao corpo, adiantou mais meio passo, galhardamente, o que fez sorrir a Canária que amava essa contestação, que lhe favorecia os repentes.

Do Zé Santinho:

Moça fera e bem parcida,
olha praquella encosta:
s’a minha cara é de fuinha,
essa tua é de lagosta.

O da Mó olhou o cantador com arrogância, apertando na mão o seu pau de carvalho argolado. O Rinchoso vendo-lhe esse ar de pimponice disse-lhe de soslaio:

— Ai ! Nossa Senhora ! que o home deita-se a perder ! . . . Buliram-lhe na madama. . .

A Rita, porém, conservou serenidade. Considerando que os dois se tinham entreolhado com rancor, moderou-se:

A lagosta é coisa boa,
p’ra quem gosta d’a comer;
tu que gostas mais da pinga,
vae aquella pipa beber.

— Isso queria ele, se lho pagassem. Ó da Mó oferece-lha! — disse um rapazola, lá do alto duma carvalheira.

O calor era intenso. Apesar de ser ainda Agosto, as folhas já cahiam das árvores, tontas como pássaros congestionados, e as landes soltavam-se dos cascabulhos, mirrados pelo sol ardente. Principiavam os ânimos de se acirrar, havia parcialidades: uns pela Canária, garbosa, cheia de vida e mordente; outros pelo Santinho velho, pilado, mas agressivo, soltando cantigas de ponta acerada. Os da Cerda, com o da Mó à frente e os instrumentos mudos, aplaudiam com estrondo a sua cantadeira; os da Rabiosa, e mais os seus parciais mostravam-se provocadores, com modos atrevidos, em volta do seu campeão. Gastos muitos remoques, a Rita, excitada pelo namorado e já um tanto menos cordata, atirou esta bisca aos contrários:

O’ homes da Rabiosa,
mais cá os do Penedo;
tirande p’ra lá os paus
qu’os da Cerda não tem medo.

— Responde-lhe teso, Zé! Eles querem função?… Responde teso! — incitou o Rinchoso.

Medo sim, quem no tivera,
de tão valentes pimpões ;
são fracos homes de cara,
vão-se a terra a safanões.

Aqui foram elas! O Chico cresceu arrogante, pálido de cólera, para o misero cantador; mas encontrou pela frente o Rinchoso, que lhe disse, entrepondo-se:

— Eh! seu home, qué lá isso! Aqui ha gente! Não é co’ele, é comigo.
Fez-se terreiro; alargou-se a arena para o combate, pelo súbito desaparecimento do mulherio e dalguns velhos e crianças. O lodão ferrado do Rinchoso encontrou-se no ar com o carvalho argolado do da Mó. Outros paus se ergueram, sentindo-se os primeiros estalidos, duns nos outros, semelhantes a matracas na quaresma. Parecia uma emaranhada floresta de árvores novas estonadas e sem folhas, varejadas por ventos
desencontrados.

Eram numerosos os da luta, os mesmos que vinham doutras desordens, por andarem de rixa, havia muito tempo. A atmosfera pesada deste dia abrasador, cujas labaredas brancas subiam arquejantes, da terra em fogo, estava riscada de listas movediças. As mulheres apavoradas, corriam pelo largo, agora desembaraçado de gente pelos que tinham fugido para os caminhos laterais e para a encosta do monte, gritando: «Ai! milagroso S. Roque, valei-lhes, que se matam!» As irmãs que tinham na contenda seus irmãos, as filhas que lá viam seus pães e as casadas que não puderam re-
ter os maridos, todas juntas, formavam clamor choroso com palavras de suplica a santos e santas da corte do céu: <Nossa Senhora dos Aflictos, acudi-nos!» «S. Christovão, que sois valente, apartai-os!» «Jesus de Misericórdia, tende piedade !> . . . Uma, que era mais fervorosa, ajoelhara no meio do adro, exortando: «Milagroso S. Roque, que nos livrastes da peste, descei do vosso altar e vinde aqui com o vosso cãozinho para lhes
morder nas pernas!»

O sangue já tingia as testas, as roucas ameaças acompanhando as pauladas, formavam um como sussurro de palavras que saísse da boca dum gigante. A área do combate, sempre movediça como superfície de mar agitado, parecia uma eira de malhos erguidos, que não caiam sobre as brancas espigas, mas sobre os corpos dos malhadores. Esbofava a cólera, mas não gemia a dor. Era uma confusão enorme em todo o terreiro da romaria. Os barraqueiros temiam pelas suas barracas de frágil lona. Os vendedores de rosários e veneras fugiam com os tabuleiros para dentro da egreja. As que apregoavam comidas punham-se adiante das suas bancas, receosas do destino das vitualhas. Quando viam aquele aglomerado de homens em cólera evolucionarem para o seu lado, como um penedo rolante, erguiam as mãos suplices, pedindo misericórdia : «Ai, Jesus! que será de nós!» Os que nada tinham a recear, diziam nervosos, entre si, comentando o acontecimento:

— São os da Cerda, com os da Rabiosa !
— São os da Rabiosa, com os da Cerda !

O clamor da gente chorosa, que era muita, crescia como rajada de vento forte e em breve chegou à residência do abade, perto da igreja, onde o jantar dos padres e dos músicos da festa, corria bem comido, bem bebido e bem falado, numa grande satisfação. Todos se levantaram, vindo á janela averiguar, por detrás uns dos outros, numa pinha de gente. Pelo que lhes dizia o sacristão, falando-lhes do caminho, reconheceram ser o caso sério, cientes como eram da rivalidade antiga das duas freguesias, por causa das suas musicas e agora por causa da cantadeira.

Desceram logo, dirigindo-se ao largo, no intuito de apaziguar a desordem. Nem todos, porém, acompanharam o abade, que ia correndo (quanto lho permitia a sua obesidade) com o guarda-pó branco a flutuar, como camisa ao vento. O mestre de cerimonias, o magricelas do padre José Maria Beltrão, foi desses prudentes, dizendo para o Pitança, que o convidava a segui-los:

— Não vou, que meu pai não faz outro como eu. Nosso Senhor deu-me uma cabeça para ter juízo e não para que ma quebrassem.

Ao que o pregador retorquiu azedo:

— Também que havia você de vir cá fazer ? ! Só com o movimento dos paus ia-se pelos ares.

O mestre de cerimonias engrilando-se, respondeu:

— O quê, padre João, o quê ? ! Onde me vê, já estive para matar um homem com um tiro.

— Mas não matou… Lerias… Caldinhos e breviário, padre Zé.

E lá foi para secundar o abade nos seus esforços de pacificação. Juntaram-se a eles mais pessoas gradas: — o morgado da Torre; o major reformado da Devesa: o fidalgo da Tranca, agora trôpego, mas que em novo levantava um carro de milho pela traseira com uma só mão; o brasileiro de Refuinho, e, finalmente, o regedor com a sua autoridade para prender. Encontraram-se no adro e foram em magote e resolutos, para a desordem, o abade gordo, roliço, fazendo gestos de longe, que lhe levantavam as abas do casaco branco. A ação simultânea desta gente de paz não foi atendida ; a bulha continuava enraivecida. Então eles vociferavam: o militar, repuxando salientemente a farta pera, guturava palavras pouco claras, pensando numa boa descarga, sobre aqueles malandros ; o morgado da Torre e o brasileiro, ameaçavam de nunca mais emprestarem dinheiro a uma tal sócia; o padre Pitança, acenando com o lenço d’Alcobaça, achava uma pouca vergonha fazerem isto em dia de S. Roque, que era todo paz e bondade ; o velho da Tranca, esse, encostado a um muro, por não poder andar, dizia colérico e saudoso:

— Ah! no meu tempo! Se fora no meu tempo, eu só, com um bom estadulho varria-os a todos…

O regedor, que se aproximara mais que os outros, vendo-se desobedecido, gritava pelos seus cabos, alguns dos quais andavam na contenda. Apesar disso bradava:

— Sou autoridade! Vão todos para a cadeia! Quem manda aqui?!…

O abade, animado com este exemplo de coragem, chegou-se mais para ser ouvido e suplicante dizia:

— Eh! rapazes! No dia do meu orago!… Olhem que S. Roque…

E como uma paulada quasi o atingisse, murmurou, retirando-se:

— Arre! que são brutos e malcriados! Ao que o pregador obtemperou:

— Estão cegos! E o que é!

Quem valeu para acabar a briga, em que já havia muitos feridos, foi a Canária com um estratagema. Sem temor de que lhe rachassem a cabeça, animosa e dedicada, meteu-se por entre os contendores, com os braços erguidos, o que lhe deixara em evidencia os magníficos seios. Falando em voz rogativa aos seus amigos da Cerda, pediu-lhes:

— Eh! moços, alto ai! Agora é comigo! A culpa foi minha, que puxei pelo home. Quebrem-me a cabeça, se quiserem, mas acabem.

Este pequeno nada, pelo denodo e novidade, amoleceu a fúria dos contendedores. Os golpes principiaram a ser menos puxados e incertos. Alguns velhos lavradores, homens respeitados e prudentes, aproveitaram o ensejo, prendendo pelo tronco os seus amigos, inutilisando-os para o combate. Os ânimos mais exaltados, os braços mais valentes abrandavam, e a desordem, como uma trovoada que se distancia, foi minorando, achando-se em breve reduzida a alguns protestos e injurias avulsas. Então é que o abade, acompanhado do regedor, poderam fazer valer a sua autoridade, falando em tom repreensivo, porém conciliador. O guarda-pó branco do sacerdote adejava-lhe em volta do corpo volumoso, como duas asas de gaivota. Limpava do cachaço o suor abundante com o lenço vermelho, e, ao retirar-se, para deixar bem nítida a sua reprovação por aquele ato no dia da sua festa, disse:

— A culpa não à vossa, não! A culpa é daquelas… E apontou as pipas de vinho que estavam tranquilas e mudas à sombra das carvalheiras.

A Canária puxando para si o Chico da Mó, levou-o para distancia dos grupos limpando-lhe o rosto cheio de sangue:

— O que eu fui fazer, moço! Estás mesmo um Santo Cristo chagado ! . . .


“A cantadeira”  – Francisco Teixeira de Queiroz, 1913

Camponeses de varapau, “espontâneos como nos serões da aldeia. Falaram de valentia. Ficou assentado que, muitas vezes, o mais fraco é o que vence; tem medo e dá logo golpe de matar.”

“Sol de Portugal (Chronica da Beira Alta)” – Fialho d’Almeida – 1918

De soldado a pastor

Despresando Fileno aborrecido
Os conselhos do velho , o bom Agrário,
Foi servir de Soldado voluntario
Ventureiro na Armada de Cupido.

As suas árduas leis seguiu rendido,
Sem nota militando temerário;
Porém já mais prudente, de Amor vário
Desertou, por seguir melhor partido:

Marte busca gostoso; e quando a lida
Marcial lhe agradou, golpe violento
Sem remédio lhe fez mudar de vida.

Hoje hum cajado traz por armamento;
Por companhia o gado, e sem medida
De peles veste o pobre fardamento.

“Obras Poéticas” Joaquim Fortunato de Valadares Gamboa – 1779

O Bordão contra o Bulhão

-Cena com homem armado de bordão a defender-se de 2 assaltantes armados com faca (Bulhão).

“Uma noite, — noite de Natal, — voltava Pêro da costumada romagem à ermida da sua fiandeira, e acertando de passar pelo beco de Martin-Alho observou que alguém, disfarçado com uma manta de cambolim guarnecida de passapelo, se desviava para o deixar passar.

Conjeturou Pêro que algum fidalgo andava ali arruando por motivo de aventuras que bem eram de supor, e nada achou de extraordinário: ele também arruava…

Andadas porém algumas dezenas de passos, percebeu que o desconhecido se movia para ele, a distância, sem o perder de vista; e, quási ás portas de D. João de Noronha, percebeu igualmente que dois vultos estacionavam, ladeando a rua.

— Talvez a ronda, — pensou Pêro.

Entretanto, da banda do primeiro desconhecido que Pêro topara, ouviu-se um prolongado silvo, e os outros dois vultos, adiantando-se para a frente de Pêro, interrogaram :

— Hou-lá, senhor rufião, ; que fazeis a deshoras, com o bordão que sobraçais? Ignorais o que as leis defendem? — Pêro, supondo falar com a ronda, ia responder, quando um dos dois vulto, arrancando do bulhão, cresceu para Pêro. Este porém, brandindo a tempo o pesado bordão, fez voar nas sombras a arma traiçoeira e partiu o crânio do agressor. Metia-se de permeio o segundo vulto, mas Pêro, vibrando-lhe ao peito violenta pontuada, fê-lo cair de costas, golfando sangue.

Livre dos dois sicários, e acreditando desde logo que eles não procediam por si sós, meteu-se de um salto dentro de casa, e ficou espiando os sucessos da rua.

Dos agressores, prostrados no solo, acercou-se o desconhecido que seguia Pêro desde o beco de Martin-Alho, e, dominado por visível inquietação, tentou erguê-los. Um estava inerte, morto; o outro gemia e golfava sangue; pôde contudo levantar se, apoiando-se no braço do adventício, que lhe disse:

— Caminha, que mal nos vai, se a ronda passa.

— Não com pressura, que as forças me falecem, senhor. — E os dois afastaram se, protegidos pela noite.

Decorrido talvez um quarto de hora, passou a ronda. Os guardas tropeçaram no sicário estiraçado na rua, e reconheceram um cadáver. Houvera certamente crime e cumpria desvendá-lo, começando-se por inquirir a mais próxima vizinhança. Bateram á porta de Pêro, que espreitava da Incarna e perguntou o que dele desejava a ronda.

— A pé estais, por esta hora? — disseram os guardas ; — testemunhastes pois o ocorrido na rua?

— Sim, testemunhei. Esse que aí jaz, e outros que fugiram, me quiseram tirar a vida a golpes de bulhão ; lutei e, por me defender, com o meu bordão prostrei um.

— Haveis de dizer isso ao senhor alcaide, que de vossa defesa não podemos julgar.

— Do melhor grado, senhores, e agora mesmo se vos praz.

— Andai connosco, trazei vosso bordão e lá direis de vossa justiça.

Confessado o assassínio, e enquanto as justiças da corte procediam ás necessárias pesquisas, o alcaide mandou recolher Pêro de Alenquer na prisão do Tronco.”

“Amôres de um marinheiro; narrativa historico-romantica”, Candido de Figueiredo, 1898