Bugiada

A Bugiada é uma festa de São João única no mundo. Não há outra assim. É uma festa que decorre todos os anos durante o dia 24 de junho, de manhã até à noite, em Sobrado, uma vila do concelho de Valongo que dista menos de 20 km da cidade do Porto. Nesta festa há um pouco de tudo: cantos, danças, “lutas”, “raptos”, crítica social e estranhos rituais.

A dança do cego

Também chamada “sapateirada”, esta componente tem muito que se lhe diga e é seguramente um dos momentos altos da festa, especialmente a quarta e última representação, que ocorre sempre junto ao adro da igreja. Há um sapateiro que trabalha no seu ofício, ajudado por um moço. A esposa fia, junto a ele. De súbito, vem um cego de enxerga às costas, que um moço guia através de uma vara. Mas condu-lo de tal modo que ele vai derrubar o sapateiro e estatelar-se de barriga para baixo no meio de um charco de lama. Ladino, o moço do cego aproveita a confusão e foge com a mulher do sapateiro, que já havia dado suficientes sinais de não estar excessivamente satisfeita com a sua sorte. O artífice não se apercebe de imediato do que se passa e despeja a sua ira varejando o cego desalmadamente. Logo que este deixa de dar acordo de si, põe-se à procura da mulher, desesperado. E logo que a descobre, é desafiado para o jogo do pau pelo raptor, vencendo-o sem grande dificuldade. E a situação volta ao ponto inicial. Esta é, digamos assim, a história sem condimentos. Os temperos são dados por um sem número de pormenores que tornam a ‘dança do cego’ dificilmente descritível. Os gestos e comentários brejeiros do sapateiro e da mulher; os excrementos que fazem a vez de cera e os sapatos cheios de lama que o artesão vai lançando sobre o povo, os salpicos de água e lama que dificilmente deixam algum dos presentes imune à aspersão – tudo isto torna esta ‘dança’ do cego numa experiência telúrica e orgiástica de fusão com os elementos naturais, com o lado nocturno da existência, num misto estranho que combina o lúdico, o humorístico e o lúbrico.

http://bocc.ubi.pt/pag/pinto-manuel-bugiada.html

E vendo eu que nesta diligência de encomendar as coisas à custódia das letras — conservadoras de todas as obras — a Nação Portuguesa é tão descuidada de si quão pronta e diligente em os feitos que lhe competem por milícia, e que mais se preza de fazer que dizer.

João de Barros – 1553

Personagens jogadores de varapau

Em alguns casos, na literatura portuguesa, os personagens são descritos como afamados jogadores de pau, mesmo que os autores não aprofundem mais a vertente de puxador do personagem, é geralmente uma forma utilizada de imprimir valentia, força, coragem e outros valores nesse personagem.
Além dos exemplos já referidos neste blog, ficam aqui outros seis:


O Manoel da Clara
“De todos os rapazes da aldeia era o Manoel da Clara o mais querido das raparigas.

Fôra sempre um belo rapaz de afugentar rivais, mas, desde que viera da tropa e de lá trouxera aquelle ar desdenhoso de feliz D. João, aprendido no convívio dos camaradas presunçósos e mulheres de vida airada, parece que as enlouquecia.

Acostumado a ajustar a farda, como apertava bem a cinta de lã preta ou carmezim, que parecia trazer espartilho, o démo do rapaz!

Os sapatos com o lustro bem puxado, que pareciam de verniz; o chapéo garbosamente descahido sobre a esquerda; a ponta do cigarro atraz da orelha; e o lenço, com flôres e uma legenda bordadas a côres vivas, a sahir da pequena algibeira da jaqueta, as mais das vezes levada ao hombro; o Manoel era na verdade a nata da rapaziada do logar.

No meio dos outros, com as suas caras rapadas de lôrpas, valentes mas sem a elegancia dos gestos disciplinados pelo exercicio regular, o seu pequeno bigode de cidadão retorcia-se aos domingos com uma petulancia irresistivel.

Nas feiras e romarias, firmado no varapau metido debaixo do braço, toda a vaidade satisfeita a brilhar-lhe nos inquietos olhitos garços, desafiava toda a concorrencia desagradavel. Ás raparigas iam-se-lhes os olhos nelle, e mediam-se com o rancôr de rivalidades latentes.

E valentão!?–como aquilo poucos! E, como sempre, era a superioridade material da força e da coragem o que mais o fazia valer aos olhos de primitivas femeas, oferecendo-se orgulhosamente ao vencedor, ao macho forte e soberbo.

Quando o Manoel, com um rapido piparote atirava para a nuca o chapéo móle de largas abas, dava um passo atraz, fazia girar o varapau em sarilho sobre a cabeça, e torcia a bôca espumante num esgare de raiva… podiam fugir delle!

Contavam-se na aldeia as valentias do Manoel com o mesmo entusiasmo e ufanía com que se contariam as de um heroi da historia, um heroi autêntico, de que a tradição nos deixasse o nome e a memoria de largos feitos.

Uma vez era todo o povo de Infias que se juntara para o desafiar, raivosos por uma questão de mulheres de que o Manoel era afortunado protogonista, e que elle _enfiara_ pela serra abaixo–que até parecia que o vento os levava.

«Ó Manoel, lembras-te?…

«E daquella vez na romaria da Senhora dos Verdes?…

«E na feira, quando foi da compra dos meus bois?!…

As perguntas, as respostas, as diferentes versões e comentarios, envolviam o Manoel num côro de louvôres, que elle recebia mal disfarçando a vaidade num meio sorriso modesto emquanto ia enrolando o cigarro entre os dedos fortes onde brilhava um anel de cobra, o encanto e a inveja dos mais rapazes.”

“Quatro novelas” – Anna de Castro Osório (1908)


sr. António Bocca Negra
“O que Pechincha não sabia era quem era o sr Antonio Bocca Negra. Era uma espécie d’animal muito pouco para inimigo. Era um Hércules mas em vez de valentia tinha brutalidade. Alto robusto patriarcha da sua tribu fazia se respeitar como o primeiro. Todos tremiam d’elle, era amigo da mulher e dos filhos mas só se fazia a sua vontade. Era fanático em pontos d’honra e adorava os frades e os conventos. Chamava a estes liberaes os phelisteus mas altar e throno tinha os no coração. Em fim era um carvalho velho que não dobrava. Era chamado por arbitro em muitas questões e a sua opinião era uma escriptura. Muitas vezes diziam:- Foi uma providencia que a este homem lhe desse para bem, aliás com aquelle génio já tinha mortes ás costas! – Apezar d’isso quando se via mettido n’uma desordem, dava bordoada a valer. Um dia sósinho varreu uma feira com um varapau escapando-se sem ninguém lhe poder tocar nem com um dedo.

Era esse o Minotauro com quem tinha que se haver o fransino e debil Pechincha.”

“Memórias da mocidade” – Francisco Soares Franco Júnior (1867)


Pescador Pedro
“Mas como todos estimavam o rapaz pelas suas excellentes qualidades, não iam os gracejos até ao ponto de o offender, o que elle tambem não supportaria porque era valente e bom jogador de pau”

“Frutos de vário sabor” – F. Games de Amorim (1868)


Tibério
“Não haver romaria, não se festejava santo, não havia feira grande em que Tibério não armasse, fazendo zunir na atmosfera carregada de poeiras e de sol o varapau ferrado de que andava sempre munido”

“Mosaicos : Contos e encontros” – Carmen de Figueiredo (1980)


O Esgalhado
“O Esgalhado é um rapaz trigueiro, mais alto que baixo, fino e sucado de carnes, bem lançado, tirado das canelas. Tem no rosto perfeito, que a patine do sol e do vento recrestou, dois olhos vivos, muito vivos, destes que olham a direito, com insistência, quási impertinentes. E sobre o lábio um buço leve de guias arrebitadas. Pulsa-lhe a agilidade no corpo musculoso. Nado e criado lá pela Beira marítima, entre a Estrela e o Mar, conjuga em si as duas graças portuguesas — a serranil e a marinheira.[…]
Com que olhes hão de olhá-lo as moças da sua terra!…
Adivinha-se ali um jogador de pau. Um destes faias da aldeia, lestos e atrevidos, que armam o reboliço numa feira.
E como é seco, esbelto, ardido, airoso, não lhe vai mal, por minha fé, aquele nome de Esgalhado. Enfim um destes puros sangues lusitanos, já tão raros, estatuado pela força da terra e pelo sonho ardente das mulheres, e cuja maquette devia figurar num museu étnico”

“Memórias da grande guerra” – Jaime Cortesão 1919


Francisco
tinha Maria os seus vinte e três annos —em que n’uma romaria se en- controu com um gentil rapaz de Santa Eulália de Barrosas, e sentiu, pela primeira vez, palpitar o coração com desusada força.
Era Francisco o mais guapo moço, jovial cantador ao desafio, destemido jogador de páu, e habilidoso carpinteiro, de todas aquellas cercanias. Sò tinha um defeito… Era um mãos-largas, vintém ganho —vintém gasto!

“Contos” – Pedro Ivo 1874

É um grande jogador de pau, ali onde o vêem; valente como as armas; leve como pós de sapatos. Quem agora aí anda na berra, é êle. É o galo da terra.

Revista lusitana: arquivo de estudos filológicos e etnológicos relativos a Portugal, Volumes 28-29 – J. Leite de Vasconcellos – 1930

Conto: António Fogueira, Rio Tinto e o Fanfarra

Conto de Teixeira de Queiroz, com cena final de luta com varapau.
Pode-se ler neste link, o conto completo, ou aqui, a parte final com o combate.

VII

O António Figueira saiu, ao escurecer, de Viana, com ideia de chegar, na manhã seguinte, à sua freguesia, fazendo, assim, todo o caminho de noite. Não havia luar e as estreitas, quase tão vivas como nas límpidas noites de inverno, difundiam na amplidão luz suficiente para, a pequena distancia, se poder apreciar o volto das pessoas, a grandeza das árvores e dos penedos próximos. Quando ele saiu de Viana, com muita gente conhecida, despediu-se da Mariana Ripa até à próxima feira dos nove. Pelo caminho, os seus companheiros, foram derivando para outros destinos e, quando era pela volta da meia noite, o Fogueira caminhava só, destacando-se, no silencio ambiente, como uma cor viva se .destaca num fundo escuro, o saliente resfolgar da sua égua, que trotava num passo moderado e cadente, batendo com as ferraduras nas pedras avulsas do caminho. A estrada que seguia era estreita, orlada de árvores copadas, o que aumentava a escuridão … O Fogueira, apesar de não ser medroso, sentia, em volta de si, um certo vazio que lhe dava uma sensação de desamparo… de abandono!… Inconscientemente principiou a pensar num mau encontro, a lembrar-se que lhe podiam vir ao caminho alguns ladrões, se por acaso soubessem que o seu cinto ia tão bem recheado de soberanos ! Quando se surpreendeu dominado por estas ideias extravagantes, sorriu incredulamente… Bem sabia não haver por ali ladrões, e que somente, uma ou outra vez, se roubava uma poçada de água, para valer a algum campo de milho, que se mirrava de secura. Mas dado mesmo o caso que lhe aparecesse um ou dois ladrões!? Não era ele um dos melhores jogadores de pau das feiras minhotas?! O seu Iodam não tinha uma choupa de romper um peito?! A sua égua não era bastante impetuosa, para abrir caminho por entre um regimento de soldados, e bastante fugideíra, para não ser pilhada pelo melhor cavalo a toda-a-brida?!… Porém, como lhe veio esta ideia esquisita de se lembrar de ladrões?! Gomo diabo lhe deu a caturrice para ali?! Não sabia, mas a verdade é que lhe desagradou o encontrar-se a pensar em tais amigos quando era certo, que tinha o cinto atulhado de dinheiro. .. No momento em que elle se sorria doestas asneiras, chegava a um pequeno largo, onde havia uns carvalhos antigos, cuja ramagem copada lhe deu facilmente uma impressão amedrontadora, como a de uma igreja, ou de um cemitério que, numa estrada rural se encontra desprevidamente! O silencio aqui era simplesmente interrompido pelo som metálico de uma pequena fonte, que pingava junto de um muro. O Figueira sentiu-se neste momento mais isolado, e, talvez, em virtude da impressão desagradável que este sentimento de desamparo lhe causou, atendeu com mais inteligência a tudo que o cercava. Um tremor incaracterístico  mas enérgico, irradiou-lhe em todo o corpo; porque dois homens, dando largas passadas de tragédia  de paus argolados levantados ao ar, se lhe oposeram com arrogância, dizendo com voz soturna:
—Faça lá alto, ó seu amigo!
A égua susteve-se logo, desconfiada, com um olhar inquieto, a cabeça levantada, as orelhas espertas! O Fogueira estremeceu involuntariamente, um formigueiro rabiou-lhe ao longo da espinha, ficando numa espécie de espasmo, depois de ouvir aquela voz rouca, atinhada, uma voz de timbre seu conhecido, mas que, neste momento, não podia dizer de quem era… Toda esta cena rápida e inesperada, deu-lhe uma ideia pavorosa de cousa sinistra, da intervenção do demónio nos sucessos da sua vida, de acontecimento só explicável em historias de bruxas!… Porém, recuperando a serenidade, reconheceu que eram realmente dois homens mascarados, que se lhe opunham no caminho e que deveria por força ser, para o roubarem… Seguindo o próprio instinto  tirou o seu pau ferrado de entre a perna e o albardão, levantou-o para eles com arrogância e dizendo «qual alto, nem meio alto!» esporeou energicamente a égua  para romper com velocidade por entre os dois mascarados. O animal, que era fino e sensível, deu um corcovo, indo esbarrar-se contra uma corda que estava intencionalmente atravessada no caminho e, o Fogueira, ficou desmontado; mas com tanta felicidade que, quando os agressores iam a cair sobre ele, encontraram-no de pé  fazendo-lhes face, com o pau em guarda, enquanto que, a distancia, se ouviam as ferraduras da sua égua batendo nas lages da calçada.
Este momento de silencio foi tenebroso! Havia dois homens contra um, na escuridade indecisa de um caminho orlado de árvores  que se definiam no ar com os seus enfolhamentos volumosos e espessos! O Fogueira esperava um ataque simultâneo da parte dos salteadores, e já calculava defender-se, de costas contra o muro, sustentando-se assim até poder bimbar o primeiro, para depois se encontrar com o segundo que acometeria com força. Mas um dos mascarados, baixando o pau com desdém, disse numa voz trocista de compaixão, para lhe mostrar que o tinha compreendido:
— Home, não te faças fino, que te enganas. Deita ai a marmelada que levas no cinto e vai-te c’os demónios, se não pode-te sair a cousa torta!
Esta intimação irónica e desprezadora ofendeu, mais do que tudo, o Fogueira, insuflando-lhe uma energia raivosa contra os dois agressores. Não o conheceriam eles?! Não saberiam que era o melhor jogador do pau das feiras minhotas?!— disse consigo este sanguíneo estouvado! Pois estavam em momento de o experimentarem!—pensou num silêncio rancoroso e indomável. E logo depois, num ímpeto leonino e sem táctica  cresceu agressivamente para ambos, tomado de um frenesim tão diabólico, que os fez recuar alguns passos neste primeiro ataque. O Rio Tinto disse-lhe com uma voz já menos disfarçada, aparando-lhe as pauladas: —Ah! queres à valentona?!… Vamos então lá a ver!…
Houve um instante de hesitação, um momento instintivo de pausa, em que de parte a parte se pensou rapidamente em acometer com a maior energia. O Figueira era bastante conhecido, como jogador temível. O Rio Tinto e o Fanfarra sabiam-no melhor do que ninguém; porque muitas vezes se tinham encontrado emparceirados em desordens e, talvez neste momento, se lembrassem que, um deles, devia à presteza e generosidade deste valente rapaz, não ter ficado morto no S. Sebastião de Vila Nova!… Porém, apesar disto, no momento actual, eles eram dois contra um! A enorme sede de vingança, e a natural maldade e valentia incontestada dos dois salteadores, davam-lhes reconhecidas vantagens. O Fogueira, ainda que fora de si, já tinha conhecido pela guarda dos adversários que eles sabiam do negocio: — reconheceu que eram jogadores. Mas o seu natural impetuoso e imprevidente levou-o a sair da defesa, com o fim de os atacar, e com a ideia de fazer a um deles, a sua finta predilecta á bôcado estômago; empregando, ainda assim, muito olho, para não perder a protecção do muro, que lhe guardava as costas. Na soturnidade da noite, profonda e cava, por entre os espessos troncos de carvalhos foIhosos, no meio do silencio imponente das montanhas vizinhas que se levantavam na amplidão, ouviam-se os estalidos secos e breves dos paus, batendo uns nos outros, por entre as respirações de cansaço cortadas de palavras injuriosas e cheias do rancor dos combatentes! No escuro, a que eles já tinham habituado os olhos, os seus corpos furtavam-se habilmente aos golpes, saltando de lado para lado, sempre numa incerteza de posição! O Fogueira, como era só, precisava empregar maior esforço e tal raiva que, no fim de cinco minutos, fez saltar o pau do Rio Tinto, para lhe atirar a pontuada ao estômago! Este porém, como lhe conhecia bem o jogo, deu um largo salto de recuo e, em vez de ir buscar outra vez a sua arma, meteu rapidamente a mão ao bolso interior da vestia, tirando a sua comprida navalha que abriu de pronto e disse na voz natural:
—Agora há de ser com esta. Ataca com força rapaz! — gritou ao companheiro.
Principiou um desses momentos terrivelmente sinistros, em que entre dois homens se estabelece esta negra ideia— de se matarem um ao outro! O Fogueira conheceu imediatamente o perigo, quando viu faiscar a lamina da navalha, que mesmo à luz tíbia das estrelas brilhara aos seus olhos, como um relâmpago! Nesta luta obscura, que se passava no silêncio de uma noite de primavera e na tranquilidade de um caminho rural, havia muita ferocidade condensada I O António Fogueira tinha, até ali, sustentado os ataques dos adversários; mas, agora, para se furtar á navalha de um assassino, só o poderia conseguir inutilisando o Fanfarra, que o ensarilhava de cada vez mais, fazendo-lhe um jogo de mil demónios I Por isso, com a ligeireza de um cabrito montez, saltava para a direita, para a esquerda, para a frente, para traz… evitando os dois inimigos que o procuravam com pertinácia … com fúria! O Rio Tinto praguejava, ameaçava-o com voz rouca… quasi natural … O Fogueira te-lo-ía conhecido em outras circunstancias; mas, em momento tão apertado, nem reflexão tinha para isso… As forças eram desiguais… o filho da Engrácia enfraquecia-se visivelmente, e a ele, que era corajoso, veio-lhe a ideia de um socorro providencial… Sentia-se já extenuado e agredido de cada vez com mais tenecidade, com mais rancor, com maior ímpeto  Aquele que o procurava por todos os modos, para o anavalhar, pronunciou com voz clara, já sem pretensões de disfarce:
—Agora Fanfarra, deixa-me c’o ele!…
E logo em seguida, o Fogueira, sentiu-se abraçado pelo seu inimigo, a quem desmascarou no instante em que a comprida navalha lhe entrava no coração, rasgando-lho com tal força, que só teve tempo de dizer num suspiro final:
— Ah! ladrão de Rio Tinto, que me matastes!
Foi este o último grito de angustia e as ultimas palavras que proferiu!… O seu corpo deixou-se cair no chão, desfalecido, com os braços pendentes e o sangue a golfar-lhe pela ferida e pela boca! Ainda teve alguns movimentos convulsivos, acompanhados de um rouco respirar stertoroso, com borbulhões de espuma sanguínea pelo nariz! A sua energia ainda manifestou um instante de louca reabilitação, pretendendo, aquele corpo moribundo, levantar-se sobre os joelhos! Mas a final caiu brutamente, ficando exânime, insensível, de bruços sobre a terra!…

O Rio Tinto e o Fanfarra conservaram-se, durante um longo minuto, a olhar para o cadáver, silenciosos, estúpidos, numa impotência inexplicável, quase sem poderem fugir! Sentiam-se agora mais covardes, mais irresolutos, depois de consumado o crime! Não tendo uma precisa compreensão das circunstancias, esperavam, um tanto passivamente, qualquer castigo que viria do alto, de uma implacável região de justiça, para os punir!… Alguém que, por casualidade, os tivesse visto, poderia aproximar-se sem que eles se escondessem ; pois que, durante este minuto sinistro, conservavam-se sisudos, calados, a olhar um para o outro, com os braços pendentes!… Mas, logo depois, o Rio Tinto, que era mais perverso e malvado, recuperando com certa prontidão a sua podre consciência, disse, em voz insultante, para o cadáver:
— Ora ai tens! … É assim que se ensinam os pimpões!…
E permanecendo algum tempo com o ouvido á escuta, para que alguém se não aproximasse inesperadamente  observou em seguida ao Fanfarra que, dominado por um terror supersticioso, escutava o som metálico da agua da fonte:
— Não tenhas medo… Não é ninguém… É ali a pingar…
Porém, como o Fanfarra, ainda se conservava nesta insensibilidade estúpida e incompressível  o Rio Tinto despertou-o dizendo-lhe, com um aceno imperativo de cabeça :
—Então?!
O outro troquilha encolheu os ombros, com certo desleixo, indicando que fizesse ele o que quisesse, que estava pronto para tudo… O assassino do Fogueira, dando movimentos desengonçados ao tronco e à cabeça, proferiu com certa ironia feroz e temível, condenando aquele estado de arrependimento:
— Ora põe-te com aquelas. Talvez ainda lhe tenhas medo. Olha que já se não mexe… —concluiu impelindo o cadáver com um pontapé.
E, logo, curvando-se sobre o corpo ainda quente, desaflvelou-lhe o cinto que suspendeu no ar, tilintando escarnecedoramente com o dinheiro, e rematou numa voz de contentamento miserável:
— Ouve-los? Cà cantam?! Fazem um certo arranjo.
O sangue ensopava a terra, jorrando em borbotões ruidosos pela boca do cadáver e pela ferida! O Rio Tinto, tendo guardado o roubo, observou com modo mais familiar, pondo a mão no ombro do companheiro, que permanecia na mesma aparente insensibilidade:
—Agora… pernas para que vos queremos. Toca a andar, que pode vir por ai algum patrão!…

Retrocederam pelo mesmo caminho, primeiro num passo rápido, depois a fugir, o Fanfarra atrás do Rio Tinto. Tomaram à esquerda, por um atalho pouco frequentado, que os devia levar, através de uns montes… a outra estrada… O Fanfarra, quando já estava mais seguro de si, parou subitamente, para considerar:
—Olha lá… Ficaria ele bem morto?!
O Rio Tinto certificou-lho do seguinte modo:
— Deus te dê mais vida do que ele tem!
Mas o Fanfarra, visivelmente preocupado com esta ideia, como estavam muito perto disse:
— Home… ainda é escuro… Voltemos a espreitar se ele se mexe!
E voltaram num passo rápido, melhor seguros de si… com a alma mais desanuviada e perversa. Ficaram a pequena distancia, de traz do muro, escutando… O silencio prolongava-se preguiçosamente na profundidade do vale. Somente o pingar monótono da fonte próxima perturbava este alvorecer indeciso, que os pássaros já principiavam a alegrar. Os assassinos, para se certificarem positivamente da morte do Fogueira, e como a escuridade ainda os protegia, saíram do lugar onde se tinham prudentemente escondido e aproximaram-se do cadáver, com certa ousadia é confiança. O corpo continuava a jazer exânime, de bruços sobre a terra! Não tinha o menor sinal de vida — nem sequer perturbava o silencio da noite, com a respiração ténue do moribundo! O Rio Tinto, empurrando outra vez o cadáver despresivelmente com o pé, pronunciou com um sorriso cínico:
—Estás bem morto I Pagaste-las todas. Já não comes mais broa.
O Fanfarra, que era menos animoso, observou-lhe, Com certo modo urgente:
— Home, deixa-o lá, coitado! Fujamos nós, que já se vai vendo!… Pode vir por ahi algum demónio…
O Rio Tinto concluiu com uma entoação trocista:
— Aposto que tens pena dele!… Ou é medo?!…
Não tenhas medo; nem ele, nem os que podem vir te prendem. Se algum pimpão ai aparecesse agora, fazia-se-lhe o mesmo e eram dois que ficavam estendidos.
Depois afastaram-se do cadáver e do caminho que tinham trazido de Viana, por atalhos seus conhecidos. Dali a poucos minutos, transpunham o cabeço sobranceiro à estrada. O Rio Tinto concluiu com serenidade:
— Agora é que é bom dar á perna, que ela vai-se mostrando…

Referiam-se à manhã que rompia, com uma claridade roxa. Era o alvorecer de um formoso dia de sol. As caminhadas dos montes circunvizinhos ainda se esfumavam indecisamente no azul; porém, o tremulusir das estrelas que fora, durante a noite, vivo e inconstante  como o dos brilhantes nos bailes da opulência mundana, principiava a extinguir-se. O ar sadio e oxigenado dos campos, dava ao corpo dos madrugadores a sensação macia de uma ligeira humidade refrigerante. Dos pinheirais e das matas de carvalhos, já saiam os galos ralhadores, com o seu voou largo, anunciando, por cima das penedias, o dia que chegava. Os braços enfolhados das árvores nascidas nas eminências, recortavam-se no céu, tenuemente anilado, manchando-lhe a pureza. A modo que o dia se ia iluminando melhor, as árvores e as massas de penedos destacavam-se, com mais precisão. Da cor roxa primitiva, o céu, foi insensivelmente passando para a cor de rosa, depois para o azul plúmbeo, por fim colorindo-se todo por igual, quando as estrelas já se não percebiam, adquiriu o verdadeiro tom de azul ferrete, uma cor húmida e enérgica, própria das manhãs de primavera no clima do Minho. O nevoeiro ténue, como um gaze lançado sobre os montes e os campos, foi se pouco a pouco condensando no fundo do vale. A vida laboriosa dos trabalhadores ia manifestar-se nos caminhos e nas encostas. Seria um dia alegre como todos os dias, — os milhos continuariam a crescer, e as poucas cearas de centeio pintar-se-iam com o amarelo da ganga… Porém, neste pequeno largo plantado de velhos carvalhos anosos e onde uma pobre veia de agua pingava continuadamente, estava disposta uma surpresa desagradável, para o primeiro madrugador da aldeia. Era o cadáver de um rapaz de vinte e tantos anos, assassinado com uma facada, que lhe entrara no coração! O seu corpo estava de braços, no supremo abandono da morte! O sangue saído da ferida, molhava a terra e manchava-lhe a cara. E, a vivificante luz da manhã, o orvalho que refrigera, as cores da paisagem que inebriam pela complexidade de tons… essa força omnipotente que vem da natureza, pairava sobre o morto, com um cepticismo irónico e dominador!…

“Antonio Figueira” – Teixeira de Queiroz 1882

Núpcias ao relento

Mais perto de mim (tão perto que estendo a mão e toco a sua lembrança carnal, a cara seca e a barba crescida, os olhos magros que em mim se repetiram) aquele avô guardador de porcos, de cujos pais nada se sabia, posto na roda da Misericórdia, homem toda a vida secreto, de mínimas falas, também delgado e alto como uma vara. Este homem teve contra si o rancor de toda uma aldeia, porque viera de fora, porque era filho das ervas, e, não obstante, dele se enamora minha avó materna, a rapariga mais bela do tempo. Por isso meu avó teve de passar a sua noite de núpcias sentado à porta da casa, ao relento, de pau ferrado sobre os joelhos, à espera dos rivais ciosos que tinham jurado apedrejar-lhe o telhado. Ninguém apareceu, afinal, e a lua viajou toda a noite pelo céu, enquanto minha avó, de olhos abertos, aguardava o seu marido. E foi já de madrugada clara que ambos se abraçaram um ao outro.


“A bagagem do viajante” – José Saramago (
1973)

Ilustrações de “O Malhadinhas” de Aquilino Ribeiro

Hoje, 25 de maio, dois dias antes do exato cin­quen­te­ná­rio da morte do meu Aqui­lino, fica­ria mal se não dei­xasse aqui um livro dele. Mas deixo um livro que ele nunca escre­veu como livro, mas que se tor­nou… num dos livros mais famo­sos dele.

O Malha­di­nhas come­çou por ser um conto, inte­grado no volume Estrada de San­ti­ago, que viu a luz do dia em 1922. Mui­tos anos depois, em 1958, volta a apa­re­cer num outro volume que tem dois títu­los, de outras tan­tas nove­las: A Mina de Dia­man­tes e O Malha­di­nhas. Só mais tarde, devido ao enorme sucesso da obra, surge com o nome a ocu­par a fachada do livro.

O Malha­di­nhas é uma aven­tura da vida. O homem exis­tiu, viveu e a his­tó­ria foi con­tada ao Aqui­lino por aquele meu bisavô que já apa­re­ceu aqui por várias vezes. Dei­xou des­cen­den­tes, um dos quais (a neta, salvo erro) foi a enter­rar em Vila Nova de Paiva (o aju­den­gado nome que deram a Bar­re­las) há pou­cos meses.

A his­tó­ria do almo­creve é con­tada na pri­meira pes­soa, coisa que ao autor não deve ter cus­tado muito. Antó­nio Malha­das, o pro­ta­go­nista do longo monó­logo que é a atri­bu­lada his­tó­ria da sua vida e que per­corre um mundo que vai de Aveiro, onde com­pra sal, a Bar­re­las, onde o vende, tendo os seus diver­ti­men­tos em cada porto, que é como quem diz em cada local de per­noita, começa por ser real e passa a fic­ci­o­nado, tendo como resul­tado uma mis­tura onde se encon­tra tam­bém o autor. Não é sem­pre assim?

Homem capaz de juras com quan­tos den­tes tem; e de men­ti­ras que dizia com a afli­ção de um credo na boca, é de boa cepa, mas puxado ao exa­gero, de exal­ta­ções rápi­das, per­dões ime­di­a­tos, sonhos gran­des, peque­nos fei­tos e cora­ção puro. Mais do que isso, exí­mio no jogo do pau, con­se­gue arran­car todos os botões do colete do adver­sá­rio com uma pequena nava­lha enquanto com ele com­ba­tia. Ao fim de um ror de tempo a mane­jar o vara­pau, quando o bru­ta­mon­tes lhe pro­põe o empate, logo Malha­di­nhas lhe reco­menda que pro­cure pelas abo­to­a­du­ras, das quais nem uma tinha, pro­vando que o podia ter ferido e morto tan­tas vezes quan­tas as casas do colete.

Há quem diga que Aqui­lino é difí­cil de ler. Qual quê! Difí­cil é dei­xar de o ler, quando se entra a sério na obra. Olhem lá como Malha­di­nhas remata uma parte da his­tó­ria em que nos conta os amo­res anti­gos, antes de ter sacado, por maus modos e con­de­ná­veis méto­dos, a prima que lhe havia de dar mais uma dúzia de filhos, depois de com ela ter casado à pressa face a um padre teme­roso. Pois o Malha­di­nhas conta-nos as aven­tu­ras de saias e remata assim: “Ricos tem­pos em que era capaz de tais Áfri­cas, ricos tem­pos”. E as Áfri­cas, como sabe o Manuel Fon­seca melhor do que vocês, e eu melhor do que o Manuel Fon­seca, são a aven­tura, a des­co­berta, a liber­dade, os hori­zon­tes lar­gos tudo na mesma pala­vra, que assim se faz poe­sia. Mas só quem sabe.

Vai o tempo, fica a sau­dade, o Malha­di­nhas reforma-se do jogo do pau a insis­tente pedido da sua que­rida mulher, Brí­zida. E ele, que é assim des­crito “Danado aquele Malha­di­nhas de Bar­re­las, homem sobre o mea­nho, reles de figura, voz tão untu­osa e tal ar de sisu­dez que nem o pró­prio Demo o jul­ga­ria capaz de, por um nonada, cri­var à naifa o abdó­men dum cris­tão” acede à mulher e prima, por quem tanto lutou e tanto penou. Pode mor­rer na paz de Deus, sem mais ter de andar a monte, a fugir.

O amor é que vence tudo, já dizem os enten­di­dos e quem sou eu para os des­men­tir. Assim é nesta his­tó­ria tam­bém. E se acaso con­venci duas pes­soas a cor­re­rem à estante ou à livra­ria para ler O Malha­di­nhas, já cum­pri com a minha obrigação.

Deus os guarde e bem hajam.
 Henrique Monteiro, 25 de Maio de 2013

Desarme

Serão oito horas da noite. O céo está recamado de estrellas, mas os corpos não projectam sombras, porque o luar só apparece ás nove horas. O sitio incute respeito: é o monte da via-sacra. Se fosse de dia ou o luar brilhasse, poder-se-hiam contar as cruzes que, a partir da capella, erecta no cimo do outeiro, se erguem pelo monte abaixo, numa distancia de vinte passos de umas ás outras.

Numa pequena elevação, sobranceira ao caminho, a cerca de trinta passos do primeiro cruzeiro da via-sacra, guiada a vista pelo brilho do lume de um cigarro, acabava-se por distinguir o vulto de um homem, assentado, com o pau traçado sobre os joelhos. Era o mestre carpinteiro, que esperava alli o visinho, para lhe provar a justiça da sua causa.

Quem lhe podesse ler no cérebro acharia isto: — Muito mal… não… Quinze dias de cama e nada mais… Há-de levar a sua dose, para não tornar a ter o atrevimento de levantar uma cadeira para mim!

E tão certo estava de si, que continuava philosophicamente a fumar o cigarro, esperando o lavrador com a pachorra, com que um pescador de profissão espera horas até que uma truta se lembre de vir brincar com o anzol.

Por fim lá lhe pareceu que ouvia ruido de passos, e ergueu-se. Não se enganara: era o lavrador. Subia este a ladeira apressadamente, estimulado pela lembrança do susto com que a mulher o estava esperando, quando o carpinteiro, de um salto, se achou defronte delle. O lavrador reconheceu-o immediatamente, mas não se deu por achado, e perguntou com voz cuja affectada segurança trahia o sobresalto interior:

— Quem temos por aqui ? O outro, rindo sarcasticamente, respondeu :

—Alguém que vem ver se você e homem para outro!

— E’ vocemecè, sr. José? — redarguiu o lavrador, buscando ganhar tempo para achar sahida áquelle aperto.

— Um seu criado, para o servir com umas azas de pau!… Pôde mandar dizer isto ao seu doutor, a vèr o que elle de la responde! — proseguiu o carpinteiro.

—Elle que ha de dizer? — retorquiu o lavrador, tentando levai o pelo brio.

—Ha-de dizer que nunca pensou que o sr. José viesse esperar um homem que nunca lhe fez mal, e que nem sequer traz um pau como esse para se defender.

— Pois dirá… dirá, sim senhor, mas… enganou-se! … Não traz pau ?… Faz mal, se bem que, nessas mãos de pouco valia!… Mas leva rumor e acabemos com isto, que eu não vim ca para conversar!

E, fincando um pé um pouco mais atraz, ergueu o pau. O lavrador comprehendeu que não havia compaixão a esperar, e, confiando com razão no vigor dos próprios músculos, deu um salto para deante, ao tempo que o adversário erguia o terrível marmelleiro, e estreitou-lhe o corpo com os braços. O carpinteiro, vendo-se abraçado, deixou cahir o pau, já agora inútil, e arcou com o vivinho, murmurando apenas por entre os dentes cerrados :

—Ah! cão, que me embaçaste!

Começou então uma lucta horrivel entre aquelles dois homens, ambos ainda jovens, ambos vigorosos. Depois de alguns minutos de esforços inauditos, para ver qual delles subjugaria o outro, o pé do carpinteiro encontrou uma velha raiz de árvore, que o fez cahir de costas, arrastando na queda o seu contrario. Este, aproveitando a vantagem, desprendeu um dos braços e apertou vigorosamente o pescoço do inimigo, que espumava de furor, sem exahalar um queixume. Não tardou, porém, que uma ideia horrível viesse paralysar o estorço do lavrador. Pareceu-lhe que o vencido tentava metter a mão no bolso, viu-se esfaqueado, passou-lhe deante dos olhos a imagem da mulher e a orphandade dos filhos, ergueu-se e fugiu.

“Contos” Pedro Ivo (1874)

Portugal no tempo em que o jogo do pau era popular

Comparação do contexto da violência em Timor e Portugal do século XIX e inícios do século XX.

Artigo completo em:
http://jpesperanca.blogspot.pt/2006/11/blogosfera-conspiraes-e-artes-marciais.html

Em Portugal no tempo em que o jogo do pau era popular como as artes marciais aqui agora

Como sempre que se fala em violência em Timor aparecem uns quantos malais iluminados a sentir-se superiores por virem de países onde “nunca há porrada e toda a gente vive numa harmonia social perfeita” (antes fosse!), é bom lembrar pelo menos como eram as coisas há uns tempos nessas terras. Na Austrália havia caça organizada ao aborígene. Em Portugal era assim há umas décadas:

“Podemos dizer o mesmo – mas com mais certeza – das manifestações de violência que, por volta dos anos 20 e 30, acompanhavam geralmente as romarias e, mais concretamente, delas faziam parte ritual.

Não nos referimos só às disputas entre jovens que podem ter origem em rivalidades amorosas, sobretudo quando os rivais pertencem a grupos territoriais diferentes (717), nem às frequentes brigas provocadas pelo vinho (718). Eram outrora comuns e hoje não são raras (719). Referimo-nos, sim, a verdadeiras guerras entre aldeias, que explodiam, quase sistematicamente, no decurso das romarias e suficientemente recentes para que os velhos se lembrem de nelas terem participado e os mais jovens de a elas terem assistido. Se os velhos que entrevistámos são pouco loquazes relativamente aos aspectos sexuais da festa no tempo da sua juventude, os seus testemunhos são, pelo contrário, constantes e explícitos e as emoções ainda bastante vivas no que diz respeito a estas batalhas, permitindo-nos assim considerá-las como parte integrante da romaria. O pároco de Baçal relata fielmente alguns exemplos do fim do século XIX e princípios do século XX: alguns duraram um dia e uma noite, outros saldaram-se por mortos e dezenas de feridos (720). O pároco de Foz Côa mostra a inserção ritual e o desenrolar esperado e estereotipado destas batalhas na romaria da sua paróquia, até uma época mais recente. A naturalidade com que refere a continuação jovial do arraial, imediatamente após a separação dos adversários pela polícia e o transporte dos feridos (ou eventualmente dos mortos), mostra bem o carácter inelutável e sistemático desta fase da peregrinação (721). De alguma forma também este sangue fazia parte da festa.

(…)

As descrições detalhadas que recolhemos directamente dos actores de outrora centram-se na rivalidade entre aldeias (722). Antigas discórdias por vezes não resolvidas: «Discutiremos isso na romaria», velhos ressentimentos herdados de outra geração e que determinam uma agressividade latente, solidariedade entre os jovens «que começaram», ou então, muito simplesmente, recusa de aceitar uma humilhação ou uma injúria imediata… todos estes motivos podem conjugar-se – e ligar-se em torno de uma fatalidade própria da romaria – num fundo de hostilidade e de alianças tradicionais de que já não se sabe a origem. (…) Uma oração de joelhos, depois, agitando ameaçadoramente os cajados, um grito: «Viva Tinalhas!» (…) E era então que frequentemente estalava a briga. Entre homens. A pau e pedra. (…) Extremavam-se os campos, sempre os mesmos: Salgueiros e Póvoa de um lado, Juncal, Freixial e Tinalhas do outro (724).

(…)

Os antigos combatentes estão de acordo acerca dos factores desta evolução que puseram termo às guerras de aldeias: a escola, a Guarda Nacional [Republicana], os sermões do pároco «quando ele é bom…». “ in Pierre Sanchis – Arraial: Festa de um Povo – as romarias portuguesas. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1992, 2ªed, p. 175-177

Ou ainda:

Ernesto Veiga de Oliveira – Festividades Cíclicas em Portugal. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1984, pp.323-324 (Citado em O jogo-do-pau como representação de estatuto e hierarquia nas sociedades tradicionais): “E era o «varrer» da feira ou do terreiro, refregas épicas, verdadeiras lutas campais, de paus que cruzavam no ar, no furor das pancadas, num jogo largo de feira ou «varrimento» (…), entre nuvens de pó, no meio da gritaria das mulheres que fugiam em todas as direcções”.

O assunto também foi tratado por autores de ficção que retratavam nos seus romances a sociedade daquele tempo. Transcrevem-se de seguida alguns excertos de Terras do Demo [ Aquilino RIBEIRO – Terras do Demo. Lisboa, Círculo de Leitores, 1983] :

“(…) -Eh, rapaziada da Seitosa – disse ele -, então que febre vos fazem as vacas?

-Ainda aí apareces, filho de sete curtas!? – increpou o Zé Narciso. – Vais pagar o descaramento…

E à mão tente despediu-lhe o lodo à nuca. O Brás aparou a pancada no ombro e respondeu-lhe com uma chuçada valente do sombreiro à arca do peito.

O outro pulou e, trás, trás, só deixou de bater pela cabeça, pelos braços, pelo corpo todo, quando o viu estrumado por terra, a roncar.

O Espadagão vinha com uma enxada para lhe britar a cabeça, mas o Cláudio vendeiro deitou-lhe o gadanho e o golpe foi quebrar-se nas costelas:

– Conho, em homem no chão não se dá! (…) [pág. 134]

Passavam maltas, de varapau a estreloiçar contra varapau, varrendo nas arrecuas do batuque o terreiro coalhado de gentiaga: Viva Lamosa! (…) [pág. 136]

Entre eles nem ficava chão para cair um alfinete. E por entre estes e as vareiras, as maltas e ranchos cavalavam. Lá rompia Granjal de lodo no ar, tau-tau, viva a rusga! (…)

Aí disparava um cavaleiro, todo farófia, chapéu de aba larga, pau de choupa entalado debaixo da perna:

– Olá, gentes, abram passagem!

Bem arreada besta, crinas rentes, franjas na retranca, rifadora por de mais. O ar dele era rebentio, com a pinta de rico, e o poviléu apartava-se à banda. Mas lá desembocava outra malta:

– Viva Tabosa!

– Viva!

– Viva até que morra!

E arremetia por ali dentro, aos safanões, ó cetrás, em borborinhos de poeira, num zafarrancho de mil demónios. (…) [pág. 241]

– Foge! Foge! – exclamou a Zabana para Glorinhas diante dum roldão de caceteiros em enovelada correria.

Eram as maltas do Granjal e da Vila da Ponte que se acometiam, naquela sua inveterada rixa de povos fronteiriços e forçudos. Emborcando tarimbas do negócio e trilhando os dorminhões, acossado pelo estreloiçar dos paus, o poviléu varreu às bandas.

Glorinhas e a Zabana meteram para a porta do santuário, em que uma onda medrosa se atropelava. A espaldas delas, retiniam pragas, gemidos e gritos de aqui-d’el-rei. Mas acudia a tropa e os desordeiros tresmalhavam a pés de cavalo. Curioso, o povo refluía sobre o lugar da refrega, que durara o tempo dum credo. Escabujava no chão homem ferido, se não morto, e vozes de mulher gemiam, testemunhando a justiça do céu e da terra. (…) [pág. 257]

Se nas primeiras décadas do séc. XX houvesse malucos azuis e um blog “Portugal-Online” ser-nos-ia naturalmente aí explicado que a cacetada da velha que havia nas aldeias portuguesas existia precisamente por causa de uma conspiração organizada pelos espanhóis, pelo Presidente Bernardino Machado, pelos monárquicos e pela Nossa Senhora de Fátima.

O bolo refolhado

“Era uma mulher casada com um homem muito ruim, que lhe batia todos os dias por qualquer coisa.

Uma vez, ao levantar-se para o trabalho, de madrugada, disse ele para a mulher:
– À noite, quando vier, quero para a ceia bolo refolhado. Olha lá, toma cuidado no que digo.

A mulher não sabia o que era bolo refolhado, e foi ter com uma vizinha para ver se ela lhe ensinava. A vizinha, que tinha muita pena da vida que ela levava, disse:
– Deixe estar, que eu cá lhe arranjo isso. Com certeza que o seu homem se enganou, há-de ser bolo «folhado». E levou-lhe à tardinha o bolo.

Quando veio o homem do trabalho, pediu a ceia, e, como não achou o bolo refolhado, berrou, ralhou, deu muitas pancadas na mulher.
Ao outro dia a mesma coisa. A mulher, coitada, foi ter com a vizinha, e ela disse-lhe:
– Arranje-lhe vossemecê uma galinha guisada, que pode ser isso o que ele talvez queira.

Voltou o homem à noite, e mais pancadaria na mulher, por não lhe ter feito para a ceia o bolo refolhado, como mandara. Ao ir para o trabalho, outra vez a mesma recomendação. A desgraçada da mulher não sabia como acabar aquele fadário, e foi ter com a vizinha a chorar.
– Deixe estar, vizinha, tudo se arranja! Venha cá ter comigo à tardinha, vestida com as calças e o jaquetão do seu homem.

A pobre mulher foi. Assim que chegou a casa da vizinha, também a achou vestida com as calças e o casaco do marido dela; e partiram ambas com os seus varapaus para o sítio por onde o homem ruim havia de vir do trabalho.

Puseram-se cada uma de um e outro lado do caminho. Quando o homem vinha a passar, diz uma:
– Bate-lhe, São Pedro!
– Porquê, São Paulo?
– Porque pede à mulher bolo refolhado.

Moeram ao som desta cantiga o homem com pancadas e depois de bem moído fugiram. O homem lá se arrastou para casa como pôde, e assim que viu a mulher pediu-lhe perdão de tê-la maltratado tanto tempo, e contou como lhe tinha aparecido no caminho São Pedro e São Paulo, que o desancaram em castigo de pedir o bolo refolhado, que era uma coisa que ele não sabia o que era.”

Teófilo Braga