Romaria Heróica

-JOSÉ MARIA GASPAR in Almanaque Bertrand, 1952

Depois da procissão, que passara num recolhimento impressionante, rompiam as danças, as rifas, os desafios e… arrulhavam os namoros cheios de pó e ilusões — estômago e coração a transbordar de vinho e amor.

Um cantador que aludiu a um namoro… Não se sabe! Talvez. Um miúdo que roubou um púcaro duma tenda. Correrias, fritos, empurrões, “sarrabulho”; e um valente de Presa garante que o ladrão é da Portela “que é terra de ladroeira”. O que foste tu dizer! Um da Portela, que ouvira, dá o tom com uma valente cacetada: Pá… á! E começava então verdadeiramente o arraial… Cruzavam-se cacetes da Presa com os varapaus da Portela. As mulheres insultavam-se fritando, empurravam-se, descompunham-se… enquanto a refrega masculina continuava acesa, movimentada, quase sem palavra, numa cadência trágica de cacetadas, vivas e um ou outro gemido prolongado dum corpo que se estende.

Que poético, meus senhores! Que lírico e bucólico panorama! Dava a impressão de que ficaria tudo raso. Desapareceram tendas, mutilaram-se coretos, evacuou-se o largo. Pelos caminhos convergiam lentamente os ranchos — cabeças atadas… e novas cantigas e novos ditos espirituosos e comentários… e o regresso a casa.

Cansados, exaustos poeirosos, amachucados, aproximam-se das suas casas. Donde vens?, perguntava-se. Venho da festa!, respondia-se. E divertiram-se? Eh! isso é que foi! Bordoada de criar bicho, cacetada a rodos… mas ninguém morreu. E o barbeiro da terra tinha ainda que fazer para muitos dias, a encanar ossos e a dar pontos artificiais.

Perdoem-me a franqueza da confissão: eu fui sempre um apaixonado pelas romarias de Portugal. Naturalmente porque as conheci noutros tempos. Aquilo é que era!

Muitos ainda se lembram, com certeza. As cachopas abalavam de madrugada para a Senhora da Guia, da Saúde, da Mó, para o Senhor da Serra, para Santa Bárb’la… Eram farnéis, sete saias de balão, os sapatos embrulhados debaixo do braço e uma dúzia de jumentos que transportavam, engalanados, as devotas avós de antanho. E a quem perguntava: “Para onde vão?”, respondiam álacres: “Vamos prá festa!”.

Castamente caiada, a capelita branquejava no pico da serrania lá muito longe, muito alto, e os olhos vivos das raparigas encaminhavam-se para lá, no entusiasmo duma cantiga, esperançados num grande milagre de amor, do seu amor.

Quando a nossa fatigada diligência ia apanhar os ranchos, já perto da ermida onde os foguetes trovejavam agradecimentos, eu pedia à minha mãe que me deixasse ir a pé. E a Rosa Celeste, a filha do nosso caseiro, orgulhava-se toda de levar pela mão o menino da Senhora. Arrepiavam-me os pobrezinhos chagosos, epilépticos, barulhentos e eu rezava com o rancho, nos “cruzeiros”, a todos os santos e santas que estão na côrte dos céus “para que nos dêem saúde e aos nossos gadinhos, nos livrem de maus vizinhos e da ira dos inimigos de longe e de ao pé da porta… Amém, Padre-Nosso, Avé-Maria”. Era a avó da Rosa que aplicava a reza, mesmo de cima do burriço, e todos correspondiam recolhidos.

Depois continuava a marcha, cantando em coro, ao desafio, deixando aqui 5 réis, ali um naco de pão, mais adiante uma sede de vinho na sacola, no bornal ou na cabaça dos mendigos intermináveis.

Era já perto da ermida. Tendas de vinho, pão e farturas, barracas de louça, comidas, brinquedos… sei lá! Os meus olhos de 7 anos espetavam-se nos comboios de lata e nos polichinelos barbudos que subiam por uma vara à cata duma fugitiva columbina… Que lindo tudo aquilo! Que saudades!

O pó cortava-se à faca. Dançava-se. Era um calor de rachar. O rancho entrava na capelinha. Todos rezavam e ouviam inflamados sermões de promessas.

Ofereciam-se votos. É vivo ainda um pequeno proprietário dos meus sítios, que uma vez, adoecendo gravemente, prometeu ao Senhor da Serra a sua junta de bois em troca da saúde recuperada. Curou-se e arrependeu-se. Contou o caso à mulher e esta verberou-lhe a precipitação: “— Tu estavas doido, homem! Um dinheirão! Quando o arranjaremos? E está aí a romaria!”. A festa chegou realmente e era de ver o “miraculado”, em lágrimas, confrangido, diante do altar, na ermida: “— Ó Divino Senhor da Serra, perdoai-me os bois, eu estava doido, a minha Maria bem mo disse!” Disse e fê-lo. Não queria ela fazê-lo. Mas ele venceu. A promessa foi cumprida.

Mas… estávamos na capelinha. Ofereciam-se muitos ex-votos. Depois, em seguida à missa enorme, com um enorme sermão, era a merenda debaixo das carvalheiras. Esfaqueavam-se os coelhos tostados e os loiros leitões e os cabritos de espeto. O vinho corria a jorros. O alarido aumentava.

Depois da procissão, que passara num recolhimento impressionante, rompiam as danças, as rifas, os desafios e… arrulhavam os namoros cheios de pó e ilusões — estômago e coração a transbordar de vinho e amor.

Um cantador que aludiu a um namoro… Não se sabe! Talvez. Um miúdo que roubou um púcaro duma tenda. Correrias, fritos, empurrões, “sarrabulho”; e um valente de Presa garante que o ladrão é da Portela “que é terra de ladroeira”. O que foste tu dizer! Um da Portela, que ouvira, dá o tom com uma valente cacetada: Pá… á! E começava então verdadeiramente o arraial… Cruzavam-se cacetes da Presa com os varapaus da Portela. As mulheres insultavam-se fritando, empurravam-se, descompunham-se… enquanto a refrega masculina continuava acesa, movimentada, quase sem palavra, numa cadência trágica de cacetadas, vivas e um ou outro gemido prolongado dum corpo que se estende.

Que poético, meus senhores! Que lírico e bucólico panorama! Dava a impressão de que ficaria tudo raso. Desapareceram tendas, mutilaram-se coretos, evacuou-se o largo. Pelos caminhos convergiam lentamente os ranchos — cabeças atadas… e novas cantigas e novos ditos espirituosos e comentários… e o regresso a casa.

Cansados, exaustos poeirosos, amachucados, aproximam-se das suas casas. Donde vens?, perguntava-se. Venho da festa!, respondia-se. E divertiram-se? Eh! isso é que foi! Bordoada de criar bicho, cacetada a rodos… mas ninguém morreu. E o barbeiro da terra tinha ainda que fazer para muitos dias, a encanar ossos e a dar pontos artificiais.

Mas que romarias, que heróicas romarias do amor antigo! Quando hoje se vai e vem de camioneta às nossas romarias, de cachopas empoadas e quase despidas, de farnéis-dieta e águas medicinais, há que ter saudades das velhas romarias buliçosas do Portugal romeiro.

Voltamos das primeiras romarias deste ano e sentimos, em tudo, que a Humanidade sofre, que o género humano está doente e que muita razão teve o episcopado Português em reprimir certos arraiais, certos divertimentos cujo espectáculo talvez ainda nos deixe saudades, mas cuja oportunidade — não há dúvida — deixou tetricamente de verificar-se. Somos solidários com os sofrimentos alheios. Por outro lado, fiquemos descansados, continua ainda e sempre a romaria eterna do amor, a romaria heróica do amor português — amor de Deus e dos homens — solidário com todos os povos e todos os séculos.

Bendita a romaria heróica dum amor assim!

D. Alvaro – Os viscondes d’Algiao

Padre João Eu sei lá o que ele é ! Um maluco, um doidivanas, que nunca há de tomar juízo  nem caminho! Insigne jogador de pau, pimpão de feiras, etc., etc. Um homem de quarenta anos, viúvo e com filhos, meter-se em partidos contra o irmão ! …  (…)

D. Álvaro (erguendo-se, e num tom mais familiar) — Pois bem ! … Acabemos com estas recapitulações, que me incomodam  Sei que fui um grande extravagante; que malbaratei duas fortunas importantes, e que sempre me valeu o mano D. António! Sei que me educou a filha; que me sustentou o filho em Coimbra por sua livre vontade; que enquanto eu, já com esta idade! — passeava, caçava, jogava o pau pelas feiras, e abria cabeças pelas vielas, meu irmão, não só me não dirigia a mais pequena reprimenda  mas até cuidava no meu bem estar, nas minhas comodidades. Há muito tempo que conclui que sou, ou fui, um doido  um estouvado, um perdulário, e o senhor um bom irmão, homem de siso, generoso, um segundo pai, sem (desgraçadamente!) a autoridade que este titulo traz consigo  Sei tudo isto, repito; e sei também que não sou ingrato, e que o reconhecimento não me sai do coração, mesmo agora que andamos de armas voltadas um contra o outro.

“Os viscondes d’Algiao: comédia” – César de Lacerda (1875)

Dançadores e jogadores

António Marcos e companheiros começam a armar de novo a sua roda de dança. É o grupo, que tem mais bonitas raparigas, mais asseadas.

Saias de cor vistosa, apanhadas, para deixarem ver saiote vermelho e curto. Meias bem puxadas; sapatos com grande rosa de fita preta na entrada; colete de cor com atacadores garridos; camisa bem refolhada; roupinhas curtas, e bem abertas; contas de ouro ao pescoço; arrecadas nas orelhas. Na cabeça, lenço branco com grandes vasos e grandes ramos bordados. Numa e noutra, por cima do lenço, pequeno chapéu desabado.

Na roda dos dançadores, quis entrar Joaquim, o criado de Jorge Pinto.

-Lá para fora! bradou António Marcos, de sobrolho carregado.

-Eu já tenho parceira, replicou aquele.

-Mal empregada! Vá dançar onde quiser! Aqui não dança você!

-Então quem manda!

-Mando eu, e mais este marmeleiro. Não dançam aqui homens com mortes às costas!

Joaquim retirou-se furioso, e meio apupado pelos espectadores.

-Venha a viola! disse o Marcos. A isto, rapazes!

Começou a dança. Os pares eram novos, alguns eram namorados, e todos andavam numa festa, que os ditos de fora, e as respostas, de dentro, mais animavam.

-Faz-me berrar essa rebeca, João! Parece que estas ai a morrer!!

-Bravo! Bravo! chamavam os de fora.

A alegria era viva e não disfarçada; e havia talvez meia hora, que não paravam os dançadores.

* * *

-Aquele é o galo, disse Joaquim com ar de mofa. Como governa naquelas galinhas, não quer lá senão frangos.

Marcos caminhou para Joaquim, que tinha ao lado alguns amigos, e perguntou:

-Onde foste buscar o animo, que agora trazes? Ah! Foi aos companheiros? Ora repete lá o que disseste!

-Digo que as mulheres são tuas gali…

Uma bofetada interrompeu o provocador.

Os amigos de Joaquim levantaram os cajados, e enquanto Marcos pegava no seu, que um rapaz lhe estendia, caiu-lhe sobre os ombros uma violenta pancada.

-Façam campo! bradou ele com o pau já em posição, e crescendo para os homens.

A este, um açoite que o tombou, àquele uma pontuada no peito, que lhe fez largar o cajado; e com rápido sarilho foi repelindo os inimigos que batiam em falso.

-Estás a jeito! disse Marcos de repente, estendendo uma pancada de boa vontade, sobre Joaquim, que foi, redondo, ao chão.

Mas aos amigos deste juntaram-se uns, àquele, uniam-se outros, e em pouco tempo se tornou encarniçada a luta, e geral a confusão.

As mulheres pediam, em altas vozes, aos homens, que por diversos títulos lhes pertenciam, que se não metessem na desordem.

Os velhos, com a mão esquerda sobre o chapéu, para que não caísse na carreira, fugiam da batalha.

Os pequenos levantavam gritaria infernal.

-Fujam! Fujam! bradava um ricasso, de chapéu braguês, calção e polaina, e casaca de abas muito curtas, correndo desorientado no meio da desordem.

-É para aqui, sr. Bráz! lhe gritava voz compadecida. Para ai, não!

O sr. Bráz corria sempre! Parou de vez, quando lhe caiu em cima, pancada sem dono, à qual nem o braguês pôde resistir!

-É o António Marcos que já varreu a Senhora das Febres! clamavam as vozes do partido de Holofernes.

-Fujam! Fujam! bradavam os partidários de Marcos. São os homens do sr. Jorge Pinto!

-Pois hoje levam coça mestra! respondeu um mocetão, cuspindo nas mãos para melhor segurar o cajado de carvalho.

A eles, rapazes! a eles!

António ia na frente do seu bando, ágil e destro, varrendo efectivamente quanto achava diante. Ora se abaixava, e cobria a cabeça e ombros, com o pau horizontalmente colocado; ora saltava para trás, ou para os lados; ora ressaltava para a frente, quando o seu adversário, do momento, tinha os braços dormentes, de haver batido no chão, e o castigava então rijamente.

-Homens! gritou o doutor de cima de uma pedra. Tenham lá mão! Está aqui gente sossegada, e estou eu também!!

-Nossa Senhora das Merçês! clamava, em sons de flautim, a mulher do sr. Lourenço.

-Homens! Então? Vocês estão doi…

O doutor não pôde acabar, porque uma onda de fugitivas mulheres, atropelando a numerosa família, o deitou por terra!

-Acudam! Nossa Senhora da Graça!

A onda passou, e o doutor envergonhado da sua pouca fortuna, levantou-se, esfregou um cotovelo, e pôs os beiços em pasmosa saliência.

-É para baixo!! gritou ele animando os que levavam de vencida os amigos de Joaquim.

António Marcos chegou ao pé da igreja, quando dela saia o vigário.

-Que é isto, António? Tu vens fazer desordens à romaria?

-Perdoe, meu padrinho!

E contou em voz alta a origem da luta.


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“Mario: episodios das lutas civis portuguezas de 1820-1834” – Antonio Silva Gaio 1868

O RAPAZ E OS LOBOS

Conta a lenda, que um rapaz namorava uma rapariga e que uma noite resolveu ir vê-la às escondidas dos pais. Para isso colocou debaixo dos cobertores várias almofadas dando a impressão de lá estar. A mãe do rapaz acordou sobressaltada com a sensação de que o filho não estava em casa. Levantou-se, foi ao quarto dele e vendo o vulto voltou para a cama. Mas continuava inquieta. Levantou-se novamente dirigiu-se à cama do filho, destapou as almofadas e viu que este não estava lá. Imediatamente ela, o marido e mais algumas pessoas se puseram à procura dele.Foram encontrá-lo no meio do mato com um pau na mão rodeado de lobos. Quando o viram, gritaram:

Descansa que já aqui há quem te valha. O rapaz distraiu-se e imediatamente e os lobos aproveitaram essa distracção para se deitarem a ele e o desfazerem. *1

Esta lenda, de final trágico, é no entanto uma excelente analogia ao chamado “jogo do norte”, a antiga prática portuguesa de defesa em inferioridade numérica. Desde a referência à total atenção requerida numa situação tão perigosa como esta, aos lobos, que estando habituados a movimentar-se de forma a cercar as suas presas, trabalham em equipa, pondo o individuo na posição caracteristica que a tradição e história portuguesa retrata estas situações de combate, em que me posso “encontrar cercado de inimigos”*2 ou “cercado numa praça campo ou rua”*3 ou obrigado a “brigar com gente por detraz e por diante”*4.

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1-Recolha efectuada em Sobral do Campo, concelho de Castelo Branco
CONTOS MITOS E LENDAS DA BEIRA – José Carlos Duarte Moura
2- “A Arte do Jogo do Pau” – Joaquim António Ferreira (1886)
3- “Do Arte de Esgrima” – Domingo Luis Godinho (1599)
4- “Memorial Da Prattica do Montante” Mestre de Campo Diogo Gomes de Figueyredo (1651)

Lenda dos quatro irmãos

Num lugar muito agradável e pitoresco , Minho , nas faldas da Serra da Falperra, antiga estrada Real que ligava Guimarães a Braga . Deu-se o nome de (quatro Irmãos) a quatro penedos que parecem tampas de sepulturas, segundo a tradição , quatro irmãos destes sitios,filhos de Maria do Canto,amavam uma formosa menina, sobrinha do Abade da Freguesia. Ardendo em amor e ciume,os quatro irmãos reptaram-se para neste lugar decidirem á paulada ,quem havia de casar com a rapariga . Tres ficaram logo mortos no campo, e o quarto, que ainda viveu algumas horas é que contou tudo ao Abade,que os mandou enterrar no sitio da contenda,que se ficou a denominar os quatro irmãos até aos dias de hoje.

A lenda:
Eram quatro irmãos.(1) Fortes e belos. E amigos. Como não se conheciam outros. Quatro irmãos, órfãos de pai e mãe. Mas tão unidos que serviam de exemplo. Exemplo de lealdade e de compreensão.

Pois os quatro irmãos viviam ali, na freguesia de Sande, (2) no cenário paradisíaco do Minho, e andavam sempre juntos. Um dia, o mais velho disse para os outros três:
– Rapazes! Vamos hoje à Feira Grande.(3) Já tenho o carro aparelhado. Voltou – se para o mais novo.
– Tu, arranja o farnel!… Leva bastante comida, Hem! Vamos lá passar todo o dia e talvez mesmo um bocado da noite.
Depois dirigiu-se aos outros dois:
– E vocês preparem mantas para o regresso. Podemos voltar tarde e é capaz de arrefecer. Temos de ter cautela com a saúde!
Não tardaram a ser cumpridas as ordens do irmãos mais velho. Este esfregou as mãos, jubilosamente.
– Assim, até apetece.Quando nós, os quatro irmãos, nos metemos ao trabalho, tudo se faz numa instante!
Riram todos. Quatro gargalhadas frescas e sadias.
Apontando o carro já preparado para a viagem, o irmão mais velho acentuou: – Vai ser um dia bem passado, lá isso vai!… Ou muito me engano, ou a Feira Grande este ano subirá de fama nas redondezas!
Os outros três corroboraram logo:
– Claro! Nós somo bem conhecidos e já nos esperam com toda a certeza! – Seremos mais uma vez a grande atracção da feira, vocês vão ver! – Quem é que pode resistir a boa amizade de nós quatro?…
E os quatro irmãos tomaram os seus lugares no carro e abalaram de corrida para a Feira Grande.
Tudo se passou tal como eles pensavam. A certa altura, tinham-se transformado nos heróis da Ferira Grande. Quatro heróis. Sempre juntos, sempre amigos!
Porém, a multidão foi crescendo, aumentando, e acabou por separá-los, mau grado deles.
O mais novo dos quatro irmãos viu-se de súbito diante duma jovem de extraordinária formosura. Pareceu um pouco aturdido. Não se sentia bem. Faltava-lhe a companhia dos outros três. E tentou continuar à procura deles. Mas a jovem formosa cortou-lhe a passagem, olhou-o bem de frente e disse sorrindo:
– Escusais de pensar encontrar agora os vossos irmãos.
E acentuando o riso e o olhar:
– Fui eu própria que vos separei.
O mais novo dos quatro reflectiu primeiro com surpresa, depois curiosidade. – Vós, Senhora?… Mas.para quê?…Por que motivo?
Ela inclinou-se para a frente. O seu perfume perturbou-o.
– Não gosto de concorrentes.Até à vossa chegada, era eu a rainha da festa! Foi a vez do jovem sorrir.
– E continuais a ser, sem dúvida alguma.
Depois, talvez arrastado pelo perfume que aspirava, prosseguiu:
– A vossa beleza, Senhora, é superior a tudo quanto nos rodeia!
Ela meneou os seus belos cabelos negros, num ar de graça.
– Obrigada pelo madrigal!…Já vejo que sois poeta!
O rapaz começou a sentir-se mais à vontade.
– Se poesia se pode chamar à verdade, Senhora.Então, sim, sou poeta para cantar a vossa formosura.
Sem querer ( ou talvez não) as mãos dela tocaram as mãos dele.
– Deveras me lisonjeais com tais palavras.Embora ainda tão novo, já sabeis falar muito bem!
O seu olhar tornou-se muito triste.
– Mas sereis eu merecedora de tanta atenção?…
O mais novo dos quatro irmãos empertigou-se. Ganhou figura.
– Digo-vos mais, Senhora. Se vós quisésseis.
– Se eu quisesse?…
– Poderíamos ser felizes!
Calaram-se. Ela, a meditar. Ele, surpreendido com a ousadia das suas próprias palavras. E ainda desta vez foi a jovem bela e estranha a primeira a falar. – Que dirão os vossos irmãos. quando souberem do nosso encontro?
Ele pareceu cair do sonho na realidade. Teve um movimento brusco de enervamento, a traduzir íntima inquietação.
– Tendes razão, senhora. Preciso de falar imediatamente com os meus irmãos. E agora, atrevidamente, foi o rapaz quem segurou as mãos dela, apertando-as nas suas. Com a violência do amor da juventude.
– Senhora, por tudo vos peço que não vos afasteis daqui. Eu voltarei em breve, para ficarmos juntos até à feira acabar!
Multiplicando-se em esforços, o mais novo dos quatro irmãos foi rompendo por entre a multidão, até que finalmente conseguiu encontrar os outros.
Ofegante, correu para eles.
– Irmãos!… Irmãos!… Ainda bem que os encontrei!
O mais velho fitou-o. Curioso e inquieto. Talvez desconfiado.
– Que se passa? Que tens tu?
Então o outro , lentamente, olhou os três, um por um, e disse devagar, silabando bem para que ouvissem melhor.
– Apaixonei-me!
Houve gargalhadas. Mas gargalhadas diferentes. Conforme as reacções de cada um.
– Deves ter bebido, com certeza!
– Apaixonado? Por alguma rapariguita da tua idade?
– Que partida é essa que tu nos queres pregar?
Mas, sem fazer caso, nem da troça, nem do desdém, nem da descrença, o mais novo dos quatro contou o seu maravilhoso encontro com a jovem formosa.
Os comentários choveram imediatamente:
– Se ela é assim, eu também a quero ver!
– Primeiro estou eu, que sou mais velho do que tu!
– Isso não interessa. Quem chegar primeiro é que vence!
– Porque não a trouxeste contigo?
– Foste um parvo! A esta hora já fugiu.
– Eu vou procurá-la!
– Nada disso. Quem vai sou eu!
De repente, o irmão mais velho resolveu impor a sua autoridade. Pela primeira vez na vida dos quatro irmãos.
– Calem-se! Sou eu o mais velho de todos. Portanto sou eu que vou falar com a tal jovem. Depois lhes direi a minha opinião.(4)
Simplesmente, tal como se conta, ele esqueceu-se de perguntar qual o local onde a rapariga ficara. E, assim, teve de percorrer a Feira Grande em várias direcções, sem que a descobrisse.
Já estava prestes a desistir, quando ouviu alguém rir mesmo junto de si. Voltou-se. Era uma rapariga estranhamente bela.
– Não me digais que sois vós o tal irmão mais velho que anda à minha procura.
Ele suspirou. Encontrara-a, finalmente! E confessou:
– Sou eu, sim . E tenho muito prazer em verificar que o meu irmão mais novo falou verdade!
Ela tornou a rir. Um riso cristalino mas esquisito.
– Perdoai, Senhora. Posso saber porque razão estais tão alegre?
Ela envolveu-o num olhar meigo e perturbador. Irónico também.
– Estou a rir. porque já todos passaram por aqui. Os outros vossos três irmãos! – Eles fizeram isso?
– E porque não?
As duas perguntas quase se chocaram. Depois o irmão mais velho tentou esclarecer:
– Não o deviam ter feito.Sabiam que eu tinha vindo precisamente à vossa procura. Para falar primeiro convosco, Senhora!… Eu tenho essas primazia. Sou o mais velho dos quatro!
Os olhos dela semicerraram-se, num olhar felino.
– Pois escutai, então. Eles passaram por aqui. e estão apaixonados por mim! Seria um desafio? Ele assim o entendeu. E não hesitou na resposta:
– Pior para eles!… Só eu, Senhora, tenho direito ao vosso amor!
A surpresa pareceu estampar-se no rosto da rapariga. Surpresa sincera. Surpresa grande.
– Como? Que dizeis?… Tendes o direito ao meu amor? Porquê?
Ele compreendeu que se excedera. Procurou adoçar a explicação:
– Bem vedes, Senhora. Sou o mais velho dos quatro. O mais experiente. O que mais vos pode oferecer. Os outros dependem de mim.
Entendeis-me, não é assim’ Como mais velho, devo ter sempre a prioridade! Ela pareceu não se conformar.
– Enganais-vos. Em amor, não há prioridade. Só eu posso decidir. Ouvis bem? Só eu quero decidir!
O homem achou melhor não prolongar a discussão. E limitou-se a perguntar: – Se assim é. que decidis?
Altiva, mais bela do que nunca, a estranha desconhecida ditou então ao vento a sua resposta, como se o vento levasse as palavras para a eternidade: – Quereis saber o que eu disse aos vossos três irmãos?… Escutai, pois: Casarei com aquele que entre vós for o mais valente e o mais forte!
Agora foi ele a rir. Um riso de triunfo.
– Mas, Senhora, eu sou tudo isso!
E logo ela, num ar gaiato e provocante, inquiriu:
– Como o provais?…
Diante da falta de resposta, continuou:
– Cada um dos vossos três irmãos afirmou também que era o mais forte e o mais valente!
– Mas eu sou o mais velho, Senhora!
Ela encolheu os ombros, espicaçando-lhe o brio.
– Isso nada prova!
O homem agarrou-a pelos ombros, num decisão súbita.
– Que desejais?
E a rapariga, libertando-se sem grande esforço, acentuou pausadamente:
– Já que me quereis. é preciso que os quatro lutem entre si, até que um fique vencedor dos outros três. Esse será o mais valente e o mais forte. E esse será também o que me conquistará !
O mais velho dos quatro baixou a cabeça. Parecia vergado por um peso enorme. Talvez o peso da própria consciência.
– Senhora, o que pedis é realmente terrível!… Assim se destruirá para sempre a amizade dos quatro irmãos. Uma amizade que vale como exemplo, Senhora! A resposta dela foi cruel, mas excitante:
– Eu só poderei pertencer a um de vós.e não aos quatro! Não pensais assim? O homem hesitou ainda, antes de falar. Por fim, as palavras saíram em voz soturna:
– Pois será satisfeito o vosso desejo, senhora. Vou à procura dos meus irmãos!
Mas logo a jovem formosa, intencionalmente aproximou-se dele e apontou para bem perto.
– Não vos canseis. Eles já estão à vossa espera, lá em baixo. Foi um encontro brutal. Os quatro irmãos (antigamente tão amigos e unidos, como outros não havia) olhavam-se agora cheios de rancor.
Pela primeira vez nascera o ódio entre eles. Um teria de matar os outros, para mostrar que era o mais forte e o mais valente. E conquistar aquela mulher estranhamente bela, que os olhava lá de cima, como que envolta numa auréola de luz. De luz ou de fogo?…
A luta começou. (5) Luta de vida ou de morte. De qualquer modo, luta de tragédia, entre quatro irmãos que até bem pouco antes eram exemplo de compreensão e lealdade!
O mais velho foi afinal o primeiro a sucumbir. Depois outro. E logo outro. Por prodígio, aquele que conseguira resistir até ao fim era o mais novo. Mas também pouco lhe restava de vida. Ele bem o compreendeu, ao olhar os corpos dos irmãos caídos por terra.
E então, sem voltar a olhar sequer lá para o cimo, onde estava a mulher desejada, começou a arrastar-se, com as poucas forças que lhe restavam, a caminho da igrejinha que ficava próximo dali.(6)
Foi desse modo que lá conseguiu chegar. Esvaindo-se em sangue.
Morrendo aos poucos.
Quis levantar-se, mas caiu nos braços do prior.
– Padre, meu bom padre. ajudai-me!
O sacerdote impressionou-se.
– Meu Deus! Nesse estado. Mas que aconteceu?…
Em voz agonizante, mal se ouvindo por vezes, o pobre rapaz, único sobrevivente dos quatro irmãos, contou a sua história triste. Triste e dolorosa. O padre benzeu-se rapidamente e benzeu o moribundo.
– Meu pobre filho. Tu e os teus irmãos foram certamente enganados pelo Demónio, na figura de uma mulher perversa.
E suspirando, de olhos erguidos ao céu:
– Meu Deus, fazei que ao menos se possam salvar as suas almas!
Com muito custo, o sacerdote conseguiu levar o rapaz agonizante ao local onde se desenrolara a terrível e singular batalha. Mas, chegados ai, o jovem não resistiu mais. Tombou também para sempre, ao lado dos outros. De novo estavam juntos, os quatro irmãos!
Lá os enterrou, o bom sacerdote, colocando-os lado a lado, rezando-lhes as últimas orações, para que as almas não se perdessem.
E fosse pelo que fosse, a verdade é que sobre a campa de cada um dos quatro irmãos surgiu, mais tarde, um penedo, (7) que passou a marcar para o futuro a triste sepultura.
E a povoação que depois se ergueu nesse mesmo local a denominar-se a Terra dos Quatro Irmãos. E, mais modernamente, apenas Quatro Irmãos. (8)

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Notas:
(5) – A luta dos quatro irmãos – tenho escutado várias referência a esta luta e nem todas são concordes na maneira como eles lutavam. Mas a versão mais divulgada é a que se batiam à paulada. É bem de admitir que tenha sido á paulada, pois era muito frequente em tempos antigos, e sobretudo no Norte do País, o jogo do pau ou luta do pau, empregando o característico varapau, vara comprida e forte, geralmente talhada numa haste de marmeleiro, que servia de cajado e de arma.

outras notas (1) (2) (3) (4) (6) (7) (8)

Uma procissão atribulada

O andor tinha três laços, e representava a torre de Agarêz. Bofetada dos de Donelo aos brios do povo, por causa dum relógio que já fez a infelicidade de muita gente. Apesar de milhentos peditórios e rifas a seu favor, nunca chegou a ser comprado. Daí a polvorosa que se levantava sempre que alguém mexe na ferida. E o prepósito era precisamente esse: acirrar. Muito em segredo, a bisarma foi armada lá na terra, e S. Brás metido no sítio do mostrador. Francamente!

A procissão sai da igreja às dez e meia, e atravessa Agarez antes de meter pela serra acima a caminho da ermida. Mas em vez de se apresentarem a horas devidas, como os demais, não senhor: só quando ela passava em frente do cruzeiro, é que os de Donelo deram o sinal de vida.

Roberto, assim que ouviu estoirar os morteiros anunciadores daquela chegada provocadora, correu perto do palio a saber ordens do Manuel da Tia, principal mordoma, que pagava uma das varas.

– Aí vêm eles… – disse.

– Deixa-os vir… – respondeu o outro, a enxugar a testa. – Não se lhes liga importância… Que sigam atrás, se quiserem. E, conforme cantarem, dançamos nós…

– Calma! – Recomendou o senhor prior, que, entre dois acólitos – o padre Rego de Paços e o padre Capão de Covas – , levava o santo lenho encostado ao peito. 

Os de Donelo entraram pelo caminho velho. O andor, descomunal, bandeava que parecia um castanheiro em Novembro. Só por meio de cordas seguras por quatro homens evitava que tombasse.

O povo de fora, alheio ao acinte, olava a maravilha assombrado. Os de Agarêz mordiam-se de raiva.

A procissão ia andando. A música de Magueija, que revezava com a de Constantim, tocava o Queremos Deus. As zeladoras andavam numa fona para nos manterem na forma.

O encontro foi no Eiró. Como um odre – o vinho de Donelo é trepador – , o farsola do Rodrigo adiantou-se alguns passos dos companheiros e, sozinho no meio da estrada, ergueu as mãos e gritou:

– Pare a procissão!

O Animal do Jaloto, que levava o estandarte e abria o cortejo, titubeou, pousou o mastro, e ficou ali a mastigar em seco, lorpa de todo. As figuras foram estacando também, claro.

O Roberto que, entretanto, entrara na venda do Ti Faustino a molhar a garganta, quando voltou e deu com os olhos no patife a impedir o caminho, perdeu a cabeça. Dum salto, chegou-se ao do pendão e berrou-lhe:

– Ó meu filho da puta, quem te mandou parar?

– Eu! – fanfarronou o de Donelo.

– Anda para diante, cagão dos infernos! Tens medo dum chafedes daqueles?

– Pare a procissão! – teimou o outro. – Queremos entrar.

– Metam-se atrás, se quiserem.

– E por muito favor!

– Os cães é que andam à trela…

E armou-se a trovoada. Siga, não siga, torna que deixa, e ainda o Rodrigo ia a meter a mão no bolso a sacar da mauser, já tinha as tripas de fora.

Os de Donelo, mal viram cair o de lá, ficaram cegos: ergueram os varapaus e começaram a eito.

Gritaria, correrias, as varas do pálio transformadas em estadulhos, e o próprio padre Capão, de pistola em punho, a defender a pele e a meter os mais assanhados na ordem.

Não morreu ninguém, felizmente, mas chegou para afligir. S. Brás ficou sem um braço, e Santa Ana, que vinha no andor de Arca esquadrilhada de todo. O Chichanas, tal mocada levou na cabeça, que teve de ser trepanado. Nunca mais regulou bem.

A procissão continuou, embora desmantelada, e tudo correu normalmente, a seguir…”

— O Terceiro Dia da Criação do Mundo – Miguel Torga

Deu-lhe cabo do canastro

A canastra arqueada como um barco, em que as mulheres do litoral vendiam o pescado; enquanto que o canastro podia significar o mesmo que espigueiro, construção da arquitectura rural sobre pilares de pedra, destinada a guardar o cereal (milho ou centeio) antes de debulhado, protegendo-o da humidade e dos roedores. Mas era também cesto baixo e longo, muita vez para transportar o pão.

“Deu-lhe cabo do canastro” não significava propriamente a destruição desse tipo de cesto, mas a sova mestra de varapau sofrida por alguém e que lhe provocara fractura das costelas. Comparação expressiva do encanastrado do vime com a estrutura óssea do corpo humano.

-Maria Isabel Mendonça Soares

Cerco de « puxadores »

Ao meio de um cerco de «puxadores» de bordões em riste, andavam em guarda dois mocetões ágeis e pinchantes, costas-com-costas, mantendo à distância os atacantes com vertiginosos sarilhos de varapau, e parando e retorquindo com vivacidade as pancadas e pontuadas que os acometiam sem cessar. O entrechocar dos lódãos e marmeleiros produzia um bizarro som de matracas e castanholas. Eram dois contra duas dezenas de jogadores. Quando o circulo se apertava e os botes se multiplicavam, pesados, esmagadores, a rastear, a cingir, a deslombar e a descabeçar, os dois esgrimistas, incitando-se com um brado, avançavam simultaneamente sob o hemiciclo dos seus contrários com um sarilho largo, irresistível, em que as «rachas», vigorosas e flexíveis, zoavam e bufavam, varrendo assim amplamente o «seu terreiro», até que o contra ataque dos adversários o retomasse, apertando novamente o cerco. Neste fluxo e refluxo de pauladas iam aquecendo e azedando os ânimos, porque nem sempre a perícia na esgrima lograva evitar as fortes contusões que, através da gentileza das fintas e dos molinetes, iam assinalando o corpo dos jogadores. Então, perdida a serenidade pela dôr ou por despeito, o torneio derivava em rixa; verificava-se esta mutação até pelo tom raivoso e exaltado das chufas, dos gestos e das palavras…
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“Terra de Basto” – Daniel Salgado – 1933

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José do Telhado – O Robin dos Bosques português


José do Telhado ou Zé do Telhado, alcunha de José Teixeira da Silva (Lugar do Telhado, Castelões de Recesinhos, Penafiel, 22 de junho de 1818 — Mucari, Malanje, Angola, 1875) foi um militar e famoso salteador português.

Chefe da quadrilha mais famosa do Marão, Zé do Telhado é conhecido por “roubar aos ricos para dar aos pobres” e, por isso, muitos o consideram o Robin dos Bosques português.

“Entregue esta Burra ao Dono!”

Feira de Vila Meã

Nesse dia, a feira estava concorridíssima. Mas era sempre assim. Porque criatura que se prezasse não faltava à feira de Vila Meã.

A feira do gado era forte, e havia a carne de porco a frigir, e havia as provas de vinho, e havia os negócios, e havia as barracas, e os vizinhos todos que tinham vindo.

O José do Telhado, apesar de saber da tenaz perseguição que lhe movia o Administrador de Soalhães/Marco, o Adriano da Casa da Picota, não via nisso razão para faltar a acontecimento de tanta importância.

Pegou no seu varapau, companheiro inseparável naqueles acontecimentos, e pôs-se a caminho. Toda a gente sabia que ele sozinho, com o seu varapau, era capaz de varrer uma feira.

Chegado a Vila Meã, foi passeando por aqui e por ali, entre as barracas, apreciando o espectáculo.

– Ó Zé, anda cá provar este vinho, que é uma categoria!

Era o seu amigo Romão.

– Com todo o gosto! – respondeu.

Entrou na barraca e abancou à mesa, onde já estavam o Romão e mais dois amigos.

Entretanto, rapidamente se propagara a notícia;

– O José do Telhado está cá na feira! – dizia um.

– Nessa não me fio eu! – objectava um segundo. – Os regedores não o largam.

– Vi-o eu com os meus olhos! – contrapunha um terceiro. – Estava a provar um vinho. E todo janota… parecia um fidalgo! Abancado a beber! Que ele importa-se mesmo com os regedores…

Por todos os cantos da feira, repetia-se com insistência:

– O José do Telhado anda aí!

– O José do Telhado anda aí!

Alguns curiosos tinham-se aproximado do local onde os quatro estavam saboreando a bela pinga.

Porém, o ajuntamento era já muito grande e o José do Telhado começou a desconfiar.

Num grupo de desconhecidos cochichava-se, tramando-se incógnito plano.

Foi nessa ocasião que o Romão quase assoprou ao ouvido do José do Telhado:

– Precata-te, ó Zé, que estão aí os espiões do Administrador!

O José do Telhado levantou-se nas calmas e encarou o ajuntamento. O Romão quis pôr-se a seu lado, mesmo sem varapau, mas ele disse-lhe:

– Deixa comigo! Trato disto sozinho!

Na realidade, havia bastantes homens em atitude agressiva, empunhando varapaus e cajados.

Foram momentos de silêncio e expectativa.

– É dar-lhe! – quebrou uma voz. – É preciso apanhá-lo! Ou vivo ou morto!

– Se for morto, já não incomoda ninguém! – acrescentou um dos parceiros.

Olhando e pensando rápido, o José do Telhado mediu toda a crítica situação em que se encontrava. E percebeu também que os seus inimigos, apesar de tantos, nem mesmo assim se afoitavam muito a avançar o primeiro passo.

Foi isso que ele aproveitou.

Num pulo de felino, colocou-se à entrada da barraca, empunhando o varapau e enfrentando os adversários.

– Então vamos lá! – disse. – Querem-me vivo ou morto?

No jogo do pau era ele exímio, e viessem agora os valentões da Picota.

Fora, na verdade, decisiva a hesitação dos candidatos a agressores, e quando voltaram a si encontraram o temível opositor pronto para a defesa. A quantidade contra um dava-lhes grande vantagem, era certo. Por isso lançaram-se ao ataque.

– É dar-lhe! – incitou de novo uma voz.

Mas o pau do José do Telhado já volteava no ar, fazendo um sarilho onde não era fácil penetrar.

Uma, duas, três cabeças partidas. Três homens fora de combate. E o José do Telhado continuava a rodopiar não permitindo que se aproximassem.

Do alto de uma soberba água castanha de pêlo luzidio, um rico lavrador observava divertido com a refrega, e sorria. A determinado momento comentou:

– Vocês são uns valentões! Tantos e não chegam para um homem!

O José do Telhado aparava de um lado, aparava do outro, e ninguém conseguia chegar-se a apertar o cerco.

– Venha lá um de cada vez! – convidou o destemido homem de Sobreira.

Mas eles nem todos juntos logravam romper a roda.

– O homem dá-vos água pela barba! – tornou daí a instantes o lavrador da égua castanha.

E a paulada continuou.

Mais outra cabeça partida. E mais outra.

Porém, o número de agressores aumentara consideravelmente. Já ascenderia à trintena. O José do Telhado apercebeu-se do melindre da situação. Olhou para o lavrador que, do cimo da égua, continuava a apreciar o espectáculo. Teve então uma ideia fulminante. E, se bem o pensou, melhor o fez: rodopiou o sarilho naquela direcção e, num fantástico salto, colocou-se em cima da soberba égua, derrubando com mão de ferro o curioso lavrador:

– Já que só está a ver, também pode ver do chão!

E fez a égua voltear garbosamente.

Depois pô-la a caminhar em gracioso trote e despediu-se delicadamente dos seus agressores, tirando o chapéu da cabeça e acenando-lhes com ele enquanto se afastava sem pressas:

– Adeus! Adeus! Até vista!

Remordiam-se os homens da Picota perante tão humilhante derrota. Ainda correram, em surriada, atrás da égua. Mas breve desistiram: porque se nem a pé se haviam com o José do Telhado, quanto mais tendo de apeá-lo da montada.

– Adeus! Adeus! – e o terrível rival ainda lhes acenava ao longe de chapéu na mão o que lhes fazia aumentar o despeito.

Três quilómetros adiante, à entrada de Salgueiros, o José do Telhado cruzou-se com um camponês e perguntou-lhe:

– Vossemecê vai para a feira?

– Vou, sim senhor.

Desmontou agilmente e passou-lhe a rédea para a mão:

– Então, se faz favor, pergunte lá pelo dono desta burra e entregue-lha.

O camponês arregalou os olhos e já tinha dado dois ou três passos quando se lembrou de perguntar:

– Diga-me vossemecê da parte de quem vou…

– Da parte do José do Telhado.

– Do José do Telhado?! – exclamou o atónito camponês, arregalando ainda mais os olhos.

– E diga-lhe que se o José do Telhado lhe puder ser prestável não tem mais que mandar.

E prosseguiu calmamente o seu caminho a pé.

__________
Retirado de: “José do Telhado – Vida e Aventura” de José M Castro Pinto – Plátano Editora, pp. 224-229

Nicolau e Venceslau

Uma história para crianças:

TODOS conheciam naquela terra o Nicolau e o Venceslau, dois homens nem moços nem velhos, nem altos nem baixos, nem bonitos nem feios, um gordo outro magro.

Ora o Nicolau tinha uma fazenda onde havia uma figueira, que dava belos figos moscateis. O Venceslau foi lá um dia, trepou à figueira, apanhou muitas dúzias de figos e meteu uns para a barriga e outros para as algibeiras.

Deu por isso o Nicolau e protestou que havia de arranjar um varapau para dar uma sova no Venceslau, que era ratoneiro e marau.

Foi ter com um marmeleiro que havia na fazenda, e o marmeleiro disse-lhe:

-Como estás tu, ó Nicolau?

E o Nicolau respondeu-lhe

-Estou bom e quero um dos teus ramos, para arranjar um varapau, para dar uma sova no Venceslau, que é ratoneiro e marau.

E o marmeleiro respondeu-lhe:

-Se queres um dos meus ramos, arranja um machado para me cortares.

O Nicolau foi ter com um machado, e o machado disse-lhe:

-Como estás tu, ó Nicolau?

E o Nicolau respondeu-lhe:

-Estou Bom e quero que cortes um ramo de marmeleiro, para arranjar um varapau, para dar uma sova no Venceslau, que é ratoneiro e marau.

E o machado respondeu-lhe:

-Se queres que eu corte o marmeleiro, arranja uma pedra para me afiares.

O Nicolau foi ter com a pedra e a pedra disse-lhe:

-Como estás tu,ó Nicolau?

E o Nicolau respondeu:

-Estou bom e quero que afies o machado, para cortar o marmeleiro, para arranjar um varapau, para dar uma sova no Venceslau, que é ratoneiro e marau.

E a pedra respondeu-lhe:

-Se queres que eu afie, arranja água para me molares.

O Nicolau foi ter com a água que havia no poço da fazenda, e a água disse-lhe lá de baixo:

-Como estás tu ó Nicolau?

E o Nicolau respondeu-lhe:

Estou bom e quero que molhes a pedra, para afiar o machado, para cortar o marmeleiro, para arranjar um varapau, para dar uma sova no Venceslau, que é ratoneiro e marau.

E a água respondeu-lhe:

-Se queres que eu molhe a pedra, arranja que a nora me leve lá para cima.

E o Nicolau foi ter com a nora, e a nora disse-lhe:

-Como estás tu, ó nicolau?

E o Nicolau respondeu-lhe:

-Estou bom e quero que levantes a água para molhar a pedra, para afiar o machado, para cortar o marmeleiro, para arranjar um varapau, para dar uma sova no Venceslau, que é ratoneiro e marau.

E a nora respondeu:

-Se queres que eu levante a água, arranja que o boi me faça andar.

O Nicolau foi ter com o boi, e o boi disse-lhe:

-Como estás tu, ó Nicolau?

E o Nicolau respondeu-lhe:

-Estou bom e quero que faças a nora andar, para levantar a água, para molhar a pedra, para afiar o machado, para cortar o marmeleiro, para arranjar um varapau, para dar uma sova no Venceslau, que é ratoneiro e marau.

E o boi, que era muito manso e obediente, fez andar a nora, e a nora levantou a água, e a água molhou a pedra, e a pedra afiou o machado, e o machado cortou o marmeleiro, e o Nicolau arranjou um varapau, com que deu uma sova no Venceslau, a quem chamou de ratoneiro e marau.

Mas como não era peco, o Venceslau tirou o varapau das mãos do Nicolau e deu-lhe um troco menos mau.

E assim ficaram ambos castigados: por furtar os figos o Venceslau e por ser vingativo o Nicolau.

Em “Serões” revista mensal ilustrada Nº8 – 1906

Avô ribatejano mestre de varapau

Ribatejano, o meu avô paterno gostava muito do rapaz que eu era e eu retribuía-lhe a amizade com cigarros Definitivos. Também levando-o aos espetáculos de luta livre no Parque Mayer. Ele gostava muito dos combates. Eu gostava mais da alegria e da raiva que os lutadores lhe davam. Ria-se e gritava. Levantava-se do lugar, empunhava a bengala, recordava as lutas da sua mocidade.

O meu avô foi mestre de varapau e por causa da sua jaqueta de alamares e calça afiambrada, teve que dar muita cacetada em fidalgotes arrogantes. Também gostava de tomar uns copos mas, diz o meu pai, por mais carregados que levasse os machinhos, nunca bateu em velhos, aleijadinhos ou dementes e nunca arrastou a asa a mulher casada.

Era um galhardo defensor dos fracos e numa daquelas noites de chuva e escuridão, depois de três litros de briol, até desafiou e fez uma espera ao Diabo que, temeroso, não apareceu na azinhaga do costume. Para a valentia do meu avô havia apenas duas qualidades de homens: os bons e os maus (os justos e os injustos, os leais e os traiçoeiros).
                                                                                                                                                         “MATA-CÃES” Fernando Correia da Silva

Aleijões sociaes

Cena de jogo do pau em teatro do sec. XIX
SCENA XI – MATHIAS, PEDRO, THEREZA, DOMINGOS

DOMINGOS de varapau na mão, áparte.
-Lá está o Pedro amarrado à moça !

PEDRO à parte
O Domingos cançou-se de esperar e vem aqui procural-a; cuida que me mette mêdo por ser mais rico?… Pois não a leva assim, com os dianhos ! 

TEREZAvendo Domingos
Ai, meus peccados ! São quasi horas de jantar e eu aqui posta de conversa !

DOMINGOS 
-Pódes conversar, Thereza ; eu ajudei tua irmã a dar de beber ao gado.

PEDRO, a Thereza
Queres que eu te acompanhe a casa ?

DOMINGOS, sorrindo
-Ella terá mêdo ? Precisas de quem te guarde, moça ?

PEDRO, a Domingos
-A cachopa estava a fallar comigo ; não tens cá que dizer chacotas, ouviste.

DOMINGOS, encostando-se ao pau
-Apósto que me bates, se eu brincar com ella ?

THEREZA
-Jesus ! Não façam tolices, por amor d’isso, vou-me já embora.

Vae-se.

SCENA XII – PEDRO, DOMINGOS, MATHIAS

PEDRO, querendo acompanhal-a
Disse que ia comtigo, está dito ! Tambem não tenho mêdo que me engulam.

DOMINGOS, atravessando-lhe o pau diante das pernas
-Não falles assim, homem !

PEDRO, levantando o seu pau
-Agora, pagas-m’o

DOMINGOS, fazendo jogo
-E tu a mim !

Fórma um sarilho, correndo sobre o Pedro ; este, recúa, defendendo-se, em toda a largura do terreiro, e quando chega à parede, attaca e obriga Domingos a recuar até ao lado opposto.

MATHIAS
-Rapazes ! rapazes !… accomodem-se, com a bréca ! vejam se se estragam, que não podem depois ir para o Brazil !

Os dois continuam jogando o pau, ora avançando um, ora outro

SCENA XIII

PEDRO, DOMINGOS, MATHIAS, DIONISIO

DIONISIO, correndo, com um varapau e fazendo jogo de longe
-Funga-lhe a venta, com seis centos diabos ! Jogam como duas fragatas ! Mas se se matam ou quebram as cabeças, não os levarei d’esta viagem. Alto ahi ! (metendo o seu pau de permeio) Alto ahi ou a coisa é comigo !

DOMINGOS, ensarilhando o pau para ele
-E que dúvida tem ?!

Atira-lhe uma paulada, que Dionisio varre, correspondendo-lhe com outra que lhe parte o pau

DIONISIO, rindo
-Eu sou mais duro de roer, meu filho !
-Aprendi com o Joaquim Cordoeiro, que era pimpão de feira, e um mestre de se lhe tirar o chapéo ! Mas dou-te a minha palavra de que tambem não trabalhas mal ; (apontando para Pedro) e cá o rapazote não te fica atraz !

PEDRO, a Mathias 
-Conte comigo, tio Mathias.

DOMINGOS, a Pedro
-Ó moço, isto acabou aqui. (dando-lhe a mão)
-Não te vás embora por minha causa ; e casa com a Thereza, se queres, que eu não me atravesso diante ti.

PEDRO, tomando-lhe a mão
-Obrigado ; estou resolvido a ir tentar fortuna

DOMINGOS
-Olha, eu não quero casar, homem ; foi tudo uma asneira. Pareceu-me que andavas a desafiar-me e por isso te fiz frente ; mas sou teu amigo e cedo-te o campo como se fosses meu irmão.

PEDRO
-Agradeço-te essas palavras, Domingos ; depois de ouvi-las, com mais razão devo partir.

Domingos fica pensativo.

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“Aleijões sociaes ; O casamento e a mortalha no ceu se talha” – Francisco Gomes de Amorim (1870)