-JOSÉ MARIA GASPAR in Almanaque Bertrand, 1952
Depois da procissão, que passara num recolhimento impressionante, rompiam as danças, as rifas, os desafios e… arrulhavam os namoros cheios de pó e ilusões — estômago e coração a transbordar de vinho e amor.
Um cantador que aludiu a um namoro… Não se sabe! Talvez. Um miúdo que roubou um púcaro duma tenda. Correrias, fritos, empurrões, “sarrabulho”; e um valente de Presa garante que o ladrão é da Portela “que é terra de ladroeira”. O que foste tu dizer! Um da Portela, que ouvira, dá o tom com uma valente cacetada: Pá… á! E começava então verdadeiramente o arraial… Cruzavam-se cacetes da Presa com os varapaus da Portela. As mulheres insultavam-se fritando, empurravam-se, descompunham-se… enquanto a refrega masculina continuava acesa, movimentada, quase sem palavra, numa cadência trágica de cacetadas, vivas e um ou outro gemido prolongado dum corpo que se estende.
Que poético, meus senhores! Que lírico e bucólico panorama! Dava a impressão de que ficaria tudo raso. Desapareceram tendas, mutilaram-se coretos, evacuou-se o largo. Pelos caminhos convergiam lentamente os ranchos — cabeças atadas… e novas cantigas e novos ditos espirituosos e comentários… e o regresso a casa.
Cansados, exaustos poeirosos, amachucados, aproximam-se das suas casas. Donde vens?, perguntava-se. Venho da festa!, respondia-se. E divertiram-se? Eh! isso é que foi! Bordoada de criar bicho, cacetada a rodos… mas ninguém morreu. E o barbeiro da terra tinha ainda que fazer para muitos dias, a encanar ossos e a dar pontos artificiais.
Perdoem-me a franqueza da confissão: eu fui sempre um apaixonado pelas romarias de Portugal. Naturalmente porque as conheci noutros tempos. Aquilo é que era!
Muitos ainda se lembram, com certeza. As cachopas abalavam de madrugada para a Senhora da Guia, da Saúde, da Mó, para o Senhor da Serra, para Santa Bárb’la… Eram farnéis, sete saias de balão, os sapatos embrulhados debaixo do braço e uma dúzia de jumentos que transportavam, engalanados, as devotas avós de antanho. E a quem perguntava: “Para onde vão?”, respondiam álacres: “Vamos prá festa!”.
Castamente caiada, a capelita branquejava no pico da serrania lá muito longe, muito alto, e os olhos vivos das raparigas encaminhavam-se para lá, no entusiasmo duma cantiga, esperançados num grande milagre de amor, do seu amor.
Quando a nossa fatigada diligência ia apanhar os ranchos, já perto da ermida onde os foguetes trovejavam agradecimentos, eu pedia à minha mãe que me deixasse ir a pé. E a Rosa Celeste, a filha do nosso caseiro, orgulhava-se toda de levar pela mão o menino da Senhora. Arrepiavam-me os pobrezinhos chagosos, epilépticos, barulhentos e eu rezava com o rancho, nos “cruzeiros”, a todos os santos e santas que estão na côrte dos céus “para que nos dêem saúde e aos nossos gadinhos, nos livrem de maus vizinhos e da ira dos inimigos de longe e de ao pé da porta… Amém, Padre-Nosso, Avé-Maria”. Era a avó da Rosa que aplicava a reza, mesmo de cima do burriço, e todos correspondiam recolhidos.
Depois continuava a marcha, cantando em coro, ao desafio, deixando aqui 5 réis, ali um naco de pão, mais adiante uma sede de vinho na sacola, no bornal ou na cabaça dos mendigos intermináveis.
Era já perto da ermida. Tendas de vinho, pão e farturas, barracas de louça, comidas, brinquedos… sei lá! Os meus olhos de 7 anos espetavam-se nos comboios de lata e nos polichinelos barbudos que subiam por uma vara à cata duma fugitiva columbina… Que lindo tudo aquilo! Que saudades!
O pó cortava-se à faca. Dançava-se. Era um calor de rachar. O rancho entrava na capelinha. Todos rezavam e ouviam inflamados sermões de promessas.
Ofereciam-se votos. É vivo ainda um pequeno proprietário dos meus sítios, que uma vez, adoecendo gravemente, prometeu ao Senhor da Serra a sua junta de bois em troca da saúde recuperada. Curou-se e arrependeu-se. Contou o caso à mulher e esta verberou-lhe a precipitação: “— Tu estavas doido, homem! Um dinheirão! Quando o arranjaremos? E está aí a romaria!”. A festa chegou realmente e era de ver o “miraculado”, em lágrimas, confrangido, diante do altar, na ermida: “— Ó Divino Senhor da Serra, perdoai-me os bois, eu estava doido, a minha Maria bem mo disse!” Disse e fê-lo. Não queria ela fazê-lo. Mas ele venceu. A promessa foi cumprida.
Mas… estávamos na capelinha. Ofereciam-se muitos ex-votos. Depois, em seguida à missa enorme, com um enorme sermão, era a merenda debaixo das carvalheiras. Esfaqueavam-se os coelhos tostados e os loiros leitões e os cabritos de espeto. O vinho corria a jorros. O alarido aumentava.
Depois da procissão, que passara num recolhimento impressionante, rompiam as danças, as rifas, os desafios e… arrulhavam os namoros cheios de pó e ilusões — estômago e coração a transbordar de vinho e amor.
Um cantador que aludiu a um namoro… Não se sabe! Talvez. Um miúdo que roubou um púcaro duma tenda. Correrias, fritos, empurrões, “sarrabulho”; e um valente de Presa garante que o ladrão é da Portela “que é terra de ladroeira”. O que foste tu dizer! Um da Portela, que ouvira, dá o tom com uma valente cacetada: Pá… á! E começava então verdadeiramente o arraial… Cruzavam-se cacetes da Presa com os varapaus da Portela. As mulheres insultavam-se fritando, empurravam-se, descompunham-se… enquanto a refrega masculina continuava acesa, movimentada, quase sem palavra, numa cadência trágica de cacetadas, vivas e um ou outro gemido prolongado dum corpo que se estende.
Que poético, meus senhores! Que lírico e bucólico panorama! Dava a impressão de que ficaria tudo raso. Desapareceram tendas, mutilaram-se coretos, evacuou-se o largo. Pelos caminhos convergiam lentamente os ranchos — cabeças atadas… e novas cantigas e novos ditos espirituosos e comentários… e o regresso a casa.
Cansados, exaustos poeirosos, amachucados, aproximam-se das suas casas. Donde vens?, perguntava-se. Venho da festa!, respondia-se. E divertiram-se? Eh! isso é que foi! Bordoada de criar bicho, cacetada a rodos… mas ninguém morreu. E o barbeiro da terra tinha ainda que fazer para muitos dias, a encanar ossos e a dar pontos artificiais.
Mas que romarias, que heróicas romarias do amor antigo! Quando hoje se vai e vem de camioneta às nossas romarias, de cachopas empoadas e quase despidas, de farnéis-dieta e águas medicinais, há que ter saudades das velhas romarias buliçosas do Portugal romeiro.
Voltamos das primeiras romarias deste ano e sentimos, em tudo, que a Humanidade sofre, que o género humano está doente e que muita razão teve o episcopado Português em reprimir certos arraiais, certos divertimentos cujo espectáculo talvez ainda nos deixe saudades, mas cuja oportunidade — não há dúvida — deixou tetricamente de verificar-se. Somos solidários com os sofrimentos alheios. Por outro lado, fiquemos descansados, continua ainda e sempre a romaria eterna do amor, a romaria heróica do amor português — amor de Deus e dos homens — solidário com todos os povos e todos os séculos.
Bendita a romaria heróica dum amor assim!