Ilustrações de “O Malhadinhas” de Aquilino Ribeiro
Hoje, 25 de maio, dois dias antes do exato cinquentenário da morte do meu Aquilino, ficaria mal se não deixasse aqui um livro dele. Mas deixo um livro que ele nunca escreveu como livro, mas que se tornou… num dos livros mais famosos dele.
O Malhadinhas começou por ser um conto, integrado no volume Estrada de Santiago, que viu a luz do dia em 1922. Muitos anos depois, em 1958, volta a aparecer num outro volume que tem dois títulos, de outras tantas novelas: A Mina de Diamantes e O Malhadinhas. Só mais tarde, devido ao enorme sucesso da obra, surge com o nome a ocupar a fachada do livro.
O Malhadinhas é uma aventura da vida. O homem existiu, viveu e a história foi contada ao Aquilino por aquele meu bisavô que já apareceu aqui por várias vezes. Deixou descendentes, um dos quais (a neta, salvo erro) foi a enterrar em Vila Nova de Paiva (o ajudengado nome que deram a Barrelas) há poucos meses.
A história do almocreve é contada na primeira pessoa, coisa que ao autor não deve ter custado muito. António Malhadas, o protagonista do longo monólogo que é a atribulada história da sua vida e que percorre um mundo que vai de Aveiro, onde compra sal, a Barrelas, onde o vende, tendo os seus divertimentos em cada porto, que é como quem diz em cada local de pernoita, começa por ser real e passa a ficcionado, tendo como resultado uma mistura onde se encontra também o autor. Não é sempre assim?
Homem capaz de juras com quantos dentes tem; e de mentiras que dizia com a aflição de um credo na boca, é de boa cepa, mas puxado ao exagero, de exaltações rápidas, perdões imediatos, sonhos grandes, pequenos feitos e coração puro. Mais do que isso, exímio no jogo do pau, consegue arrancar todos os botões do colete do adversário com uma pequena navalha enquanto com ele combatia. Ao fim de um ror de tempo a manejar o varapau, quando o brutamontes lhe propõe o empate, logo Malhadinhas lhe recomenda que procure pelas abotoaduras, das quais nem uma tinha, provando que o podia ter ferido e morto tantas vezes quantas as casas do colete.
Há quem diga que Aquilino é difícil de ler. Qual quê! Difícil é deixar de o ler, quando se entra a sério na obra. Olhem lá como Malhadinhas remata uma parte da história em que nos conta os amores antigos, antes de ter sacado, por maus modos e condenáveis métodos, a prima que lhe havia de dar mais uma dúzia de filhos, depois de com ela ter casado à pressa face a um padre temeroso. Pois o Malhadinhas conta-nos as aventuras de saias e remata assim: “Ricos tempos em que era capaz de tais Áfricas, ricos tempos”. E as Áfricas, como sabe o Manuel Fonseca melhor do que vocês, e eu melhor do que o Manuel Fonseca, são a aventura, a descoberta, a liberdade, os horizontes largos tudo na mesma palavra, que assim se faz poesia. Mas só quem sabe.
Vai o tempo, fica a saudade, o Malhadinhas reforma-se do jogo do pau a insistente pedido da sua querida mulher, Brízida. E ele, que é assim descrito “Danado aquele Malhadinhas de Barrelas, homem sobre o meanho, reles de figura, voz tão untuosa e tal ar de sisudez que nem o próprio Demo o julgaria capaz de, por um nonada, crivar à naifa o abdómen dum cristão” acede à mulher e prima, por quem tanto lutou e tanto penou. Pode morrer na paz de Deus, sem mais ter de andar a monte, a fugir.
O amor é que vence tudo, já dizem os entendidos e quem sou eu para os desmentir. Assim é nesta história também. E se acaso convenci duas pessoas a correrem à estante ou à livraria para ler O Malhadinhas, já cumpri com a minha obrigação.
Deus os guarde e bem hajam.
Henrique Monteiro, 25 de Maio de 2013