Juiz de Paz

Frei Bento Domingues, numa critica à violência no ser humano, contempla desde as grandes guerras entre impérios e nações, aos pequenos conflitos entre famílias e indivíduos, deixando-nos o exemplo local do jogo do pau português que ainda conheceu como forma de resolver conflitos. Felizmente, esta forma de combate, com varapau, já não tem essa aplicação pratica no contexto dos dias de hoje. Mas infelizmente a violência na sociedade, desde a confrontação bélica à violência doméstica, urbana etc, ainda faz parte da vida de muita gente. Fica assim um registo de como era antigamente, não há muito tempo atrás.

“Conheci, desde muito novo, a estupidez da violência entre famílias e aldeias vizinhas que chegavam a expressões sangrentas nas feiras e nas romarias da minha zona. O meu pai, “Juiz de Paz”, era de uma paciência sem medida para conciliações e reconciliações sempre efêmeras. Tinha de abandonar, muitas vezes, os trabalhos do campo para ir servir de mediador em desacatos em aldeias bastante afastadas. Nunca quis aprender o “jogo do pau”, jogo aparente e treino real para ajuste de contas.”

Frei Bento Domingues, O. P. in Público, 15.06.2014

Alguns mestres de Jogo do pau de Lisboa dos últimos séculos

Alguns dos antigos mestres de jogo do pau português da escola de Lisboa  dos últimos séculos.

Mais informações sobre alguns dos mestres em:
http://jogodopau.tumblr.com/mestres

Baseado em “Jogo do Pau – Esgrima Nacional” – António Nunes Caçador 1963

[vimeo 20371954 w=500 h=375]

Neste vídeo, aos 22:10, Matt Galas apresenta-nos a sua interpretação de duas regras para montante, escritas por autores Ibéricos por volta dos séculos XVI e XVII. Estas duas regras são especificas para a situação de combate em interioridade numérica, estando cercado, primeiro numa rua apertada onde só se conseguem fazer pontuadas, e segundo, numa rua mais larga onde já se conseguem fazer ataques em rotação.

No jogo do pau português, a prática de combate em inferioridade numérica é bastante trabalhada e o desenvolvimento do jogador vai muito além da prática de formas repetitivas. No entanto, este tipo de formas, simples e simétricas, que se podem repetir indefinidamente são a base que se tem que ter para se poder progredir. Como nos demonstram vários autores, já eram praticadas à vários séculos, e preservaram-se em vários grupos de jogo do pau tradicional, alguns deles que ainda os podemos ver quer no interior no pais quer nas grandes cidades.

4 Séculos, 4 autores, 4 soluções para combate numa rua estreita

Apresento aqui, por ordem cronológica, quatro diferentes autores de manuais/documentos técnicos de esgrima, que nos apresentam quatro soluções diferentes para uma situação muito particular, a de combater numa rua ou caminho estreito, com uma arma de cerca de metro e meio de comprimento, estando cercado pelos dois lados. Vamos ver o que estes autores de séculos diferentes nos dizem:

(Nota: textos adaptados a um português mais atual)


1- “Arte de Esgrima” Domingo Luís Godinho – 1599

“Cercado numa rua meio estreita:
Se estiveres cercado numa rua em que se possam dar e jogar talhos* e reveses*, com adversários por detrás e pela frente, segurarás o montante com a mão direita junto à guarda e com a esquerda junto ao pomo, virando os lados para os adversários, com as costas viradas para uma das paredes. Jogarás aos do lado direito um talho, metendo o pé direito a esse mesmo lado, e esse talho será armado pelo ar, a cortar de cima para baixo(…). De maneira que jogarás um talho como se diz, e não parará até que caia em pontuada, com as unhas para cima, aos que estão do lado esquerdo, e juntamente meterás o pé que havias metido ao lado direito, ao lado esquerdo, do lado do outro, de maneira que o corpo fique voltado com as costas para a outra parede. O meter do pé , talho, a volta e a pontuada armada, tudo deve ser um tempo e logo voltarás de revez aos do mesmo lado direito com o qual irá armado, por cima da cabeça como o talho, e acabará com a pontuada, unhas para baixo, aos do lado esquerdo(…) E com os passos por cima do pé esquerdo e direito, irás continuando a batalha tanto quanto for necessário.”


2 -“Memorial da Prática do Montante” Diogo Gomes de Figueiredo – 1651

“Serve esta regra para brigar em rua estreita, Dispõem se dando um talho debaixo para cima metendo diante o pé direito, e logo deixando cair o montante pela mesma parte direita se dará por ela um alta-baixo, para vir a situar uma estocada com a maçã do montante no ombro direito que se dará metendo o pé direito, e começar-se-á de novo a regra com o rosto para a outra parte, com os mesmos golpes até tornar a virar se for necessário.”


3 -“A arte do jogo do pau” Joaquim António Ferreira – 1886
“quando eu for por um caminho estreito e me saia um inimigo pela frente e outro pela retaguarda, devo vigiar um passo, coberto com o pau; assim que eu apare a pancada, devo largar a mão de traz, vir com a perna de traz à frente, deitar a mão ao pau do inimigo e dar-lhe com a ponta do meu; em seguida devo aparar a pancada do inimigo da frente e dar-lhe uma pontuada.”

4 -“Programa técnico de Esgrima Lusitana – Varapau” Nuno Russo – 2012
“Técnica da quelha:
1. Entrada a avançar a perna esquerda com meio passo na direção do adversário atrás varrendo com pancada arrepiada pela esquerda e ataca com pancada de alto a baixo ao finalizar o passo.
Se necessário fazer a varrimenta com a arrepiada a avançar 1 passo completo e crescer no ataque de alto a baixo.
2. Igual ao procedimento anterior para o adversário oposto.
Nota: Usadas em espaços estreitos (Quelhas). A pancada arrepiada tanto pode ser executada como defesa ou ataque”


Como podemos ver, os 4 autores utilizam sequencias de ataques ligeiramente diferentes, com combinações de ataques e/ou pontuadas, sendo as mais semelhantes, as sequencias de ataque de Figueiredo(2) e de Nuno Russo(4), ambos executam uma arrepiada (um ataque de baixo para cima) seguido de um rebate(um ataque de cima para baixo/vertical).

No entanto, mais importante do que a sequencia de ataques utilizado, é um aspeto que se mantém em todos eles, e este é a tática de gestão do espaço, pressionando um dos lados com ataques e deslocamento nessa direção, ao mesmo tempo afastando-se do adversário do outro lado. Voltando-se de seguida ao outro lado para criar a mesma situação, tentando sempre, enquanto possível e necessário, manter os adversários afastados.

Este principio não é só respeitado por estes autores na situação especifica de combate numa rua apertada, mas é uma constante nas dezenas de regras/formas presentes nos quatro documentos aqui apresentados, em que os jogadores estão cercados de dois lados.

– Frederico Martins

—/—
*Os investigadores que descobriram e transcreveram os documentos de Montante dizem-nos que o talho é um ataque pela direita, e o revez um ataque pela esquerda, que pode ser enviesado ou arrepiado.

Links:
Algumas regras de Godinho: http://www.spanishsword.org/translations

“Arte de esgrima” de Luis Godinho, 1599, foi recentemente publicada em http://www.ageaeditora.com

“Memorial da pratica do montante” completo, em português e traduzido para inglês:

“arte do jogo do pau”: http://www.lulu.com/shop/joaquim-ant%C3%B3nio-ferreira/a-arte-do-jogo-do-pau/ebook/product-21605137.html

Sobre mestre Nuno Russo, onde Praticar etc: http://www.esgrimalusitana.pt

Crónica a eleições de outros tempos

E o que me dizem ás eleições?
D`esta vez foram d’uma pacatez e serenidade de que não há exemplo; não houve cabeças partidas, nem pernas quebradas, nem tiros, nem nada; decididamente as eleições vão perdendo todo o interesse. D`antes havia tumultos, a autoridade reclamava telegraficamente uma força de cavalaria, que partia a galope, e chegava depois de tudo sossegado; os administradores de concelho apresentavam-se com uma guarda de honra de chorudos cabos de policia, armados de paus ferrados ainda mais chorudos e sempre havia algum molho; agora está tudo d’acordo, os gregos e os troianos entendem-se perfeitamente e, d’ahi a sensaboria de se chegar à igreja para exercer esse nobre direito político a que se chama votar e a urna estar já tão cheia com as listas que tinha no seio desde a véspera, que é impossível caber lá mais um simples oitavo de papel e o cidadão ter que voltar para casa (…)

Mas, é muito melhor este sistema; tem a vantagem de que se vai votar com a certeza de se volta para casa são e escorreito e, em tempos que já lá vão, era um tanto arriscadote não estar do lado do regedor da freguesia.

João Pacifico “Tiro e Sport” 30 Junho 1904

Aproximei-me do circo onde se travavam d’antes as luctas homéricas dos valentes jogadores de pau. Estava deserto.
Apenas, depois de largo intervallo, appareceram dous conservadores das velhas tradições, que esgrimiram um pouco mas sem enthusiasmo nem applauso.

É profundamente triste este desapparecimento do espirito cavalheiresco e poético de um povo.

“Fora da Terra” – Júlio César Machado, 1878

Na praça da Nazaré, em pleno largo, de manhã e de tarde, pelo tempo das festas, joga se intrepidamente o pau. Há ali professores e discípulos: alguns curiosos ali vão de propósito para se amestrarem neste exercício.

Em chegando aquele tempo da romaria, os professores montam nos seus machinhos, e vão para lá dar lições de pau. Dantes era a pinto por discípulo; hoje já não há pintos, mas creio que ainda há discípulos, e a diferença consistirá simplesmente em lhes custar mais cara a prenda. Alguns são admiráveis de agilidade. A multidão faz-lhes roto, acotovelando-se uns aos outros no empenho de qual há de ver o jogo de mais perto, e aplaude, aclama, entusiasma-se; chega a parecer que é para aquele caso que repicam os sinos, e estalam os foguetes! O jogo quase sempre acaba ao serio, influem-se de rixa os curiosos, e um só homem defende-se a pau de quatro ou cinco, e parte-lhes a cara a todos enquanto o anjo vai deitando a lôa….

“Á lareira – O homem das forças” – Júlio César Machado, 1872

EN:
“At the Nazaré’s Square, in the morning and in the afternoon by the time of the festivities, there happens be some intrepid staff fencing. The are teachers and students there, and some others interested in mastering themselves on this exercise. At this time of pilgrimage, the teachers ride their horses and go there to give staff fencing lessons. They used to cost a “Pinto”(old coin). Today there are no “Pinto” coins anymore, but there are still students. The difference is  that the “pay” now is more expensive. Some of them are admirable in agility.
The Crowd surrounds them, to see the fencing from closer, applaud and exclaims, it even seems that the bells and the fireworks from the festivities are there for this occasion. The fencing almost always ends with severity, the most invested in, pressure it, and a man alone fences them off with a staff, against four or five, and breaks their faces in blink of a eye.”

Entre os adultos, no século XIX, era vulgar o jogo do pau, mais como arma de defesa e ataque, do que como entretenimento. Não havia feira ou romaria onde os homens não procurassem demonstrar a sua destreza e agilidade.

E houve na Ortigosa um afamado jogador de pau, de seu nome José Braz Arroteia, homem de corpulência extraordinária, que o ajudava a ser invencível e temido pelos seus opositores. A sua fama chegou longe, tendo até dado lições de jogo do pau, em Salvaterra, ao rei D. Miguel.

http://www.soutodacarpalhosaeortigosa.pt/home.php?t=ct&c=27

Mestre José Gonçalves Dias (o 95)

(…)José Dias (por alcunha o 95), antigo contra-mestre do mestre Salreu, como preito de gratidão á sua memoria, devo dizer, que soube ser um grande mestre e jogador, foi um homem d’um caracter ultra honrado, generoso, ativo trabalhador, e tão desinteressado para com os seus discípulos, que nunca deixou de bem os ensinar, mesmo quando não tinham dinheiro para lhe satisfazer a ridicula paga costumada, e era principalmente tão cheio de boa vontade no ensino, que punha tudo em pratos limpos, não lhes ocultando a mais insignificante parte do jogo

Tal era o excesso do seu desejo de ensinar, que por vezes, mais tarde quando já eu era também mestre, lhe notava que estava ensinando coisas para as quais o discipulo não tinha ainda preparação, ele me respondia: Ensine voçe os seus como entender, porque os meus teem pouco dinheiro para gastar, mas olhe que os meus são tão bem conhecidos em toda a parte, que quem chegar para eles, tem de saber o que faz.

Pois este meu mestre e amigo, a quem tanto e tanto devo do pouco que sei do jogo, foi um dos discipulos preditetos do grande mestre Domingos Salreu, que também  me deu (conforme os bilhetes de lições atestam) nada menos de meia grosa de lições(…)

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“Duas palavras sobre o jogo do pau” – Frederico Hopffer 1924

foto: “Jogo do Pau – Esgrima Nacional” – António Nunes Caçador 1963

Jogadores de pau na Galiza

Eis um sucesso já de fins do século passado que teve lugar numa feira da Galiza e que é narrado por um galego Xanquin Lorenzo Fernandez, de Orense, num artigo enviado por ele para o jornal o «Comércio do Porto» em 1950, intitulado «O Varapau»

Diz Fernandez

«Passou-se a coisa na feira de Porqueiróz, feira de ano, em que se juntaram feirantes de toda a comarca e fora dela. Os das diferentes freguesias iam com o seu gado e com os seus frutos fazendo-se uma das melhores feiras da Galiza daquele tempo. Uma vez, ignora-se porquê, começou uma rixa entre os feirantes e dois Portugueses que, vizinhos moradores naquelas terras havia já em tempos, acudiram a Porqueiróz. A rixa assanhou-se e chegou, como sempre a hora dos paus. Um dos portugueses ao ver o perigo berrou ao companheiro:

– «Oh irmão! junta costa com costas!!» – Postos deste jeito, cada um com o seu varapau, defenderam-se os dois sózinhos dos que os atacavam. durante muito tempo mantiveram-se firmes, a despeito dos muitos atacantes, pouco a pouco, foram-se desfazendo os adversários; uns feridos e outros acobardados. O triunfo coube-lhes a eles, que sozinhos, «desfizeram a feira». tal era a superioridade que lhes dava a sua pericia em «Jogar o Pau»». E Fernandez continua:

«no resto da Galiza, desconheço tal arma. E assim, parece-me evidente que se trata de um instrumento de origem portuguesa o facto do seu emprego preferente nas terras raianas, e não no resto da Galiza; o de este se encontrar pelo contrário, de uso muito corrente em Portugal; a nacionalidade dos seus mais famosos cultivadores.»

-Os Portugueses e o Mundo – Conferencia Internacional, VI Volume. Artes, Arquelogia e etnografia. Fundação Eng. Antonio de Almeida

Tragédia de palco

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em Os Amorosos da Foz (Camilo Castelo Branco), António Reis ti­nha de fazer o jogo do pau, como se faz em Fafe, mas o colega acertou-lhe num dedo e partiu-o. Ele aguentou todo o espetáculo durante mais de uma hora e meia e ainda hoje diz que se vê a diferença no dedo. Na altura, teve de cortar um anel que não saía.

1985 – OS AMOROSOS DA FOZ
Texto: Camilo Castelo Branco
Adaptação: Norberto Barroca
Texto Rábula Inicial: B. Veludo
Encenação: Norberto Barroca
Cenários e Figurinos: Norberto Barroca
Música: Paulino Garcia

Elenco: Carlos Lacerda; Raúl Santos Silva; Margarida Machado; Zélia Santos; Rui de Sousa; David Cardoso; Lurdes Rodrigues; Alfredo Correia; Luís Correia; Luís Cunha; Glória Férias; Rui Ferreira; Alexandre Falcão; Júlio Cardoso; António Reis; Estrela Novais; Emília Sequeira; Pedro Branco