Os Quadrilheiros

O primeiro corpo de agentes policiais foi criado por D. Fernando I, os chamados Quadrilheiros, com um efectivo de 20 elementos, tendo recebido um Regimento, datado de 12 de Setembro 1383, que refere no seu preâmbulo a grande criminalidade que grassava na cidade de Lisboa.

Estes Quadrilheiros (recrutados à força, entre os homens mais fortes fisicamente) ficavam subordinados à Edilidade, por três anos consecutivos, e obrigados por juramento a terem as suas armas (uma Vara, que devia estar sempre à porta de cada um deles, a qual representava o sinal de Autoridade para prenderem e conduzirem o criminoso perante a Justiça dos Corregedores).

Cada quadrilheiro era responsável pela chefia de uma quadrilha (patrulha) de 20 homens. Todos os membros da quadrilha andavam armados com uma lança de 8 palmos (1,76 m). Os quadrilheiros tinham, como insígnia, uma vara verde com as Armas Reais.

Ordálio

No Processo criminal, perante a divergência de juramentos, podia-se recorrer aos ordálios, mediante os quais se remetia a decisão para o juízo de Deus na crença de que Deus não poderia favorecer o culpado contra o inocente. Houve várias modalidades de ordálios na Europa, mas parece que no território português só foram usados o ferro em brasa e a lide ou duelo judicial.
(…)
No ordálio procurava-se o juízo de Deus. Resolvido o duelo, os juízes examinavam os dois contendores e, no dia aprazado, ambos ouviam missa, após o que prestavam juramente. O primeiro jurava que o direito estava do seu lado; o segundo jurava a seguir que tal juramento era falso.
Um dos dois, portanto mentia: qual fosse, era o que Deus ia revelar dando a vitória à verdade. O mesmo se podia passar quando uma das partes acusava uma testemunha de falso testemunho.

O Duelo podia ter lugar a pé ou a cavalo, segundo a condição social dos lidadores. Os peões podiam bater-se com varapaus (o que está ligado à esgrima de varapau, ainda hoje praticada em muitos lugares), os cavaleiros combatiam com lança, tendo para defender-se o escudo.
(…)
Deve dizer-se que a igreja, sobretudo a partir do século XII, contrariou a prática dos ordálios, já considerados proibidos no Decretum de Graciano (1140) e formalmente condenados no Concílio de Latrão (1215), e pelas Decretais de Gregório IX (1234).

-“História do Direito Português [1140-1495]” – Marcelo Caetano (1981)

O genuíno homem de Basto.

Meio oculta entre os possantes raizeiros das serras da Cabreira, de Barroso e do Alvão e relativamente afastada das duas antigas vias de Trás -os-Montes (Amarante e Venda a Nova), a região de Basto não participou, pode dizer-se, de qualquer facto histórico de relevo. As únicas «batalhas» que aí se terão travado foram as refregas que uma vez ou outra se derimiam com lodos rodopiantes, por via de qualquer questo de água ou quesílias de romaria. Dessas «guerras», por vezes homéricas, mas obscuras, não rezam as crónicas. Sem toque de cornetim, os dois bandos,  movidos por pundonores de tipo corso ou atávicas malquerenças de «lugares» vizinhos, encontram-se em qualquer sitio ou encruzilhada e, a um simples brado regougado – «Eh, amigos! É agora!» -, entravam a matar, escachando-se o melhor que podiam com pauladas estralejantes e secas. Os atingidos iam caindo de gatas e juncando o chão da refrega. Ao cabo de meia hora (metade do tempo de Aljubarrota) a rixa mortífera estava concluída, levando os que levavam a melhor os seus feridos aos ombros ou em padiolas improvisadas com próprios vergueiros e ficando os vencidos a morder o pó, entre charcos rubros e roncos de estertor.

Estas lutas tão obscuras como  os possíveis combates travados há dois ou três mil anos entre os moradores de Briteiros e de Sabroso são uma espécie de luxo e de timbre da coragem indomável do genuíno homem de Basto.

“Guia de Portugal IV – Entre Douro e Minho”

Demonstração de jogo de Pau em 1958 dirigida por mestre Domingos Calado

Demonstração de jogo de Pau em 1958

Domingo 9 de Março de 1985, pelas 14 horas em Bucos

“Assistir a uma demonstração de jogo de pau é reviver um pouco do passado e prestar culto aos nossos maiores. Em tempos idos não havia banquetes nem festas solarengas onde não fosse exibido, principalmente nas províncias do Minho, Douro e Trás-os-Montes.

Não falte a ver a mais bela e velha esgrima Portuguesa.”

Manual português de defesa pessoal com varapau do século XIX

Neste documento, o autor descreve várias situações de defesa pessoal em que os homens do seu tempo se encontravam, dando formas que se poderiam treinar para enfrentar essas situações. Entre muitas outras, deixo aqui uma bastante comum:

“Quando eu seguir por uma estrada e me apareça um inimigo pela frente e outro pela retaguarda, devo vigiar um passo e um varrimento para cortar a pancada do inimigo, e vir à frente com outro passo e varrimento para apanhar o inimigo; se o não puder apanhar, devo dar dois passos e dois varrimentos rebatidos à frente, e torno a vigiar um passo e varrimento rebatido e venho à frente para apanhar o inimigo.”

Além destas soluções de combate em inferioridade numérica ou de um contra um, também nos dá conselhos sobre os cuidados a ter em algumas das circunstâncias do seu dia a dia que se poderiam tornar perigosas, como por exemplo:

“Quando estiver numa feira, devo estar atento e vigiar para todos os pontos; se vier um homem desconhecido pela banda das minhas costas, passarei para o lado do meu amigo a fim de ficar de cara com o homem e não ser atraiçoado.”

“Arte do Jogo do Pau” Joaquim António Ferreira (1886)

Dia do Juízo

A verdade é que, em tempos antigos, sempre que nos Arcos se falava em que os soajeiros queriam descer à vila em atitude hostil, o susto não era pequeno. Lembro-me disso em criança.

Há alguns anos sucedeu porém, um facto que desenganou os arcoenses de que podiam medir as suas forças com estes destemidos serranos. Foi o caso que os soajeiros quiseram desafrontar-se de quaisquer agravos de romaria, feitos não sei por que frequentadores de feiras ou arraiais de outras freguesias do conselho. (Prozêllo, etc.) Levaram a sua a audácia a escolher para o despique um dia de feira dos Arcos, de modo que vieram em massa e, simulando um batalhão, subiram provocadoramente a calçada que na vila conduz ao elevado sitio, onde se faz a feira do gado e onde, portanto, se reúnem os puxadores de pau, os varredores de feiras, os mestres, enfim, na arte de rachar cabeças do próximo.

A autoridade administrativa, que, prevenida, foi parlamentar com os chefes da expedição, nada conseguiu!

Chegados ai, sem mais tir-te nem guar-te, iniciaram, com os seus toscos varapaus de cerquinho, um rodopio cego, a torto e a direito, sobre os surpreendidos lavradores e contratadores de gado, que na feira se encontravam. Mas não tardou que a impulsiva estratégia da arremetida tivesse o desfecho natural. Senhores de uma posição favorável e assomados pela ousadia dos soajeiros, todos os que tinham uma boa vara nas unhas, depois de se «cobrirem» dos primeiros «talhos», responderam-lhes com uma torrente de pancadaria tal, caindo de roldão sobre os soajeiros e acossando-os com os seus lodãos fortemente «argolados» que, dentro de breves minutos, ninguém na vila sabia o que fora feito dos arrogantes caceteiros, tamanha foi a estugada aflição com que sumiram pelas encruzilhadas e pelos milharais. Do prélio ficou um morto dos vencedores! Constava depois que ao desbarato não fora estranha a pedrada do mulherio. Na expressão minhota, foi um verdadeiro “dia do juízo” nos Arcos!

Noticia sumária acerca do Soajo – Feliz Alves Ribeiro

[youtube http://www.youtube.com/watch?v=bf_chyY4Nbw?feature=oembed&w=500&h=374]

(ao minuto 1:44)

Solidários entre si, os soajeiros são conhecidos na nossa história pela sua independência de espírito e combatividade, de que é exemplo, entre outros, a figura quase lendária do juiz do Soajo. E sem esquecer a famosa rixa que eles , hà pouco mais de meio século tiveram com gente dos Arcos de Valdevez, onde um dos seus tinha sido maltratado. Combinada a desafronta, juntou-se um numeroso grupo de soajeiros, que no dia marcado varreu literalmente a feira dos Arcos, com os paus de que eram temidos jogadores. A quem procuravam dissuadir-los respondiam, “Quando saímos do Soajo já os sinos ficaram a tocar pelos que hão de morrer”

Mestre António Pereira Penela

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Um valoroso nome nortenho.

Teve escola na cidade do Porto onde leccionou bastante durante alguns anos.

Foi mestre do antigo cavaleiro tauromático Carlos Relvas, nas suas propriedades no Ribatejo.

Mestre António Pereira Penéla nasceu em 19 de Fevereiro de 1813 e faleceu em 1908 com 70 anos de idade.


“Jogo do pau (Esgrima Nacional)”, António Nunes Caçador, 1963

Arthur dos Santos

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“Da sua tentativa para cultivar o gosto pelo jogo do pau, de que foi iniciador o saudoso Pedro Augusto, um excêntrico do seu tempo, alguma coisa fructificou também e a Escola Académica conta hoje no número dos seus professores Arthur dos Santos, discípulo directo de Pedro Augusto e seu sucessor no  Real Gymnasio.”

“Ilustração Portugueza” Nº98 p727 – 18 de Setembro de 1905

Franceses famintos

Junho à lareira, de olhos lacrimejantes, o neto João não perdia pitada da conversa entre o avô e a mãe. Ao ouvir as últimas palavras do ancião, empinou-se, feito estaca, e atirou: 

– Eu vou com o avó!

E ali estavam, que não houve ralho da mãe nem choro das irmãs que o demovesse. Marcelo, que a princípio contrariou o desejo do garoto, embora lhe gabasse a tesura e a amizade, acabou por ceder quando o ouviu dizer, muito sério, que queria ir ver o pai e o tio, e sempre podia ser um arrimo para o avó, quanto mais não fosse para lhe cuidar do burro.

Espigado e comprido como o tio, ao rapaz todos davam a idade de treze ou catorze anos, quando andava ainda nos doze. E que adorava o tio e o avô, ao primeiro por não haver homem mais valente a combater franceses, e ao segundo por ser o mais emérito jogador de pau da região, sabia-o a garotada da aldeia que lhe escutava as loas com que enfeitava os seus heróis familiares. Ele próprio. treinado pelo pai e pelo avó na arrochada, já pedia meças a moços mais velhos e encorpados, que esta arte era como a de artesão a passar de pais para filhos e netos. 

O velho ainda sorria ao recordar estes factos, satisfeito por ter trazido o rapaz consigo – via-se ser um Marcélo autêntico, ao melhor estilo do quem sai aos seus não degenera -, quando parou na berma da estrada e retirou dos alforges do asno dois nacos de toucinho frito para reconfortar os estômagos.

Tinham feito quase todo o percurso da gândara entre a Mealhada e Souselas – para além do pinheiral bastio, já vislumbravam umas mamoas escalvadas, que a davam por finda com o tempo a negacear entre um sol pálido e nuvens de chuvisco, sem sombra de percalço a empecer-lhes o caminho. E mal amesendaram na ribanceira da estrada, logo os sarilhos lhes surgiram, com os dois diabos postados a dez passos entre o arvoredo. Foi o rapaz que os lobrigou e, em voz murmurada. para não causar alarme, chamou a atenção do velho.

– Olhe, avó, acolá, dois vagabundos de olhos postos em nós. Seguiu o Marcêlo a olhada do neto. Avistou os homens. mais pele do que osso, de rostos esquálidos e olhos encovados, mais mortos que vivos, mais implorativos que hostis. Pelo azulado das vestimentas, feitas em farrapos e cobertas de sujidade, descortinou-lhes a qualidade de militares. À vista, não traziam armas. Um deles. amparado a um tronco de pinheiro, segurava o outro pelo sovaco. de roupa manchada de sangue seco no peito. 

À cautela, o velho agarrou no cacete de marmeleiro e disse ao rapaz que não tivesse medo, que os homens não podiam com uma gata pelo rabo. Depois arvorou um ar prazenteiro e saudou:

– Olá, amigos. são servidos? 

Sem sair do local, um deles implorou: 

-Faim, Faim- ao mesmo tempo que levava a mão a boca em gesto de comer. 

-Ó avó, não são dos nossos, pelo falar, são franceses. Vamo-nos a eles, antes que nos matem – alarmou-se o rapaz, a pegar no porrete que tinha a seu lado. 

– Calma, meu neto, são apenas dois homens esfomeados. um deles à beira do colapso, sem forças para nos inquietarem. Larga o marmeleiro, vai ao alforge do asno por mais comida e deixa o caso comigo. 

O miúdo obedeceu, enquanto o avô, descansando o corpo sobre o pau debaixo da axila, fazia gestos amigáveis aos intrusos, para que se aprochegassem dele que, onde comiam dois, comiam quatro. O que trazia o outro ao dependurão, encostou-o ao pinheiro e avançou vacilante, mas de olhar voraz para as taliscas de entremeada frita e para a broa que o rapaz entregava ao avó. 

-Merco, merci – balbuciou ao receber a comida da mão esquerda estendida do Marcêlo, de mão direita no pau que o amparava, a jogar pela cautela, não fosse o desgraçado passar-se dos carretas e pensar em atacá-lo.

Comeu avidamente, via-se que pelo estreito nada lhe tinha passado nos últimos dias. De seguida. voltou para junto do parceiro, com uns restos nas mãos. Mas o pobre diabo nem forças teve para engolir. Estava nas últimas, na opinião do velho, que não perdia um gesto do que se passava diante dos olhos.

O homem voltou de olhar esgazeado e implorativo, de dedo apontado ao odre dependurado no arção do burro:

-De l’eau, par Dieu.

Pelo gesto. Marcêlo entendeu o pedido. Disse ao neto que lhe chegasse a água. O rapaz hesitou, percebia-se que discordava do avó, a dar de comer e de beber aos inimigos contra os quais o pai e o tio arriscavam a vida. 

– Não tenhas medo, João. Aprende que água e pão nunca se nega a um cristão, mesmo nosso inimigo – sossegou o avô.

O ferido ainda engorgitou uns goles de água que o companheiro lhe esguichou na boca entreaberta. Recusou a comida. incapaz de engolir. Recuperado o odre, o velho entendeu que eram horas de abalar. Montou o neto no burro e despediu-se com afabilidade: 

– Fiquem com Deus, que mais não vos posso fazer. Ainda tenho muito caminho pela frente. 

O que se sustinha nas pernas lançou-lhe um olhar de gratidão. Depois, desesperado. ficou a chorar debruçado sobre o ferido. 

O neto ia zangado com o avô. Cem passos andados increpou-o: 

-Ó avô. porque é que não os matámos? Ali, à mão de semear, foi uma pena não o fazermos. Duas cacetadas e estavam feitos. 

O velho olhou o neto nos olhos e disse-lhe:

– Vais responder à minha pergunta, mas de mão na sua consciência, que já és um homenzinho. Achas que te sentias honrado e destemido a matar dois homens a cair de fome. um deles já nas vascas da agonia, praticamente indefesos? 

O rapaz embezerrou e manteve-se na dele. 

– Não é o que eles fazem à nossa gente? Não nos pilham e matam sem cuidar de ser velho, mulher ou criança? Não são eles que vêm à nossa terra fazer-nos mal? 

Marcêlo percebeu que tinha no neto um antagonista difícil de convencer.

– Não respondeste à minha pergunta. E não respondeste porque sabes que tenho razão. Não se mata quem está meio morto. Fazê-lo seria cobardia, por muito que o merecessem. 

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A Paixão de Araci” – José Marques Vidal (2012)

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