António Marcos e companheiros começam a armar de novo a sua roda de dança. É o grupo, que tem mais bonitas raparigas, mais asseadas.
Saias de cor vistosa, apanhadas, para deixarem ver saiote vermelho e curto. Meias bem puxadas; sapatos com grande rosa de fita preta na entrada; colete de cor com atacadores garridos; camisa bem refolhada; roupinhas curtas, e bem abertas; contas de ouro ao pescoço; arrecadas nas orelhas. Na cabeça, lenço branco com grandes vasos e grandes ramos bordados. Numa e noutra, por cima do lenço, pequeno chapéu desabado.
Na roda dos dançadores, quis entrar Joaquim, o criado de Jorge Pinto.
-Lá para fora! bradou António Marcos, de sobrolho carregado.
-Eu já tenho parceira, replicou aquele.
-Mal empregada! Vá dançar onde quiser! Aqui não dança você!
-Então quem manda!
-Mando eu, e mais este marmeleiro. Não dançam aqui homens com mortes às costas!
Joaquim retirou-se furioso, e meio apupado pelos espectadores.
-Venha a viola! disse o Marcos. A isto, rapazes!
Começou a dança. Os pares eram novos, alguns eram namorados, e todos andavam numa festa, que os ditos de fora, e as respostas, de dentro, mais animavam.
-Faz-me berrar essa rebeca, João! Parece que estas ai a morrer!!
-Bravo! Bravo! chamavam os de fora.
A alegria era viva e não disfarçada; e havia talvez meia hora, que não paravam os dançadores.
* * *
-Aquele é o galo, disse Joaquim com ar de mofa. Como governa naquelas galinhas, não quer lá senão frangos.
Marcos caminhou para Joaquim, que tinha ao lado alguns amigos, e perguntou:
-Onde foste buscar o animo, que agora trazes? Ah! Foi aos companheiros? Ora repete lá o que disseste!
-Digo que as mulheres são tuas gali…
Uma bofetada interrompeu o provocador.
Os amigos de Joaquim levantaram os cajados, e enquanto Marcos pegava no seu, que um rapaz lhe estendia, caiu-lhe sobre os ombros uma violenta pancada.
-Façam campo! bradou ele com o pau já em posição, e crescendo para os homens.
A este, um açoite que o tombou, àquele uma pontuada no peito, que lhe fez largar o cajado; e com rápido sarilho foi repelindo os inimigos que batiam em falso.
-Estás a jeito! disse Marcos de repente, estendendo uma pancada de boa vontade, sobre Joaquim, que foi, redondo, ao chão.
Mas aos amigos deste juntaram-se uns, àquele, uniam-se outros, e em pouco tempo se tornou encarniçada a luta, e geral a confusão.
As mulheres pediam, em altas vozes, aos homens, que por diversos títulos lhes pertenciam, que se não metessem na desordem.
Os velhos, com a mão esquerda sobre o chapéu, para que não caísse na carreira, fugiam da batalha.
Os pequenos levantavam gritaria infernal.
-Fujam! Fujam! bradava um ricasso, de chapéu braguês, calção e polaina, e casaca de abas muito curtas, correndo desorientado no meio da desordem.
-É para aqui, sr. Bráz! lhe gritava voz compadecida. Para ai, não!
O sr. Bráz corria sempre! Parou de vez, quando lhe caiu em cima, pancada sem dono, à qual nem o braguês pôde resistir!
-É o António Marcos que já varreu a Senhora das Febres! clamavam as vozes do partido de Holofernes.
-Fujam! Fujam! bradavam os partidários de Marcos. São os homens do sr. Jorge Pinto!
-Pois hoje levam coça mestra! respondeu um mocetão, cuspindo nas mãos para melhor segurar o cajado de carvalho.
A eles, rapazes! a eles!
António ia na frente do seu bando, ágil e destro, varrendo efectivamente quanto achava diante. Ora se abaixava, e cobria a cabeça e ombros, com o pau horizontalmente colocado; ora saltava para trás, ou para os lados; ora ressaltava para a frente, quando o seu adversário, do momento, tinha os braços dormentes, de haver batido no chão, e o castigava então rijamente.
-Homens! gritou o doutor de cima de uma pedra. Tenham lá mão! Está aqui gente sossegada, e estou eu também!!
-Nossa Senhora das Merçês! clamava, em sons de flautim, a mulher do sr. Lourenço.
-Homens! Então? Vocês estão doi…
O doutor não pôde acabar, porque uma onda de fugitivas mulheres, atropelando a numerosa família, o deitou por terra!
-Acudam! Nossa Senhora da Graça!
A onda passou, e o doutor envergonhado da sua pouca fortuna, levantou-se, esfregou um cotovelo, e pôs os beiços em pasmosa saliência.
-É para baixo!! gritou ele animando os que levavam de vencida os amigos de Joaquim.
António Marcos chegou ao pé da igreja, quando dela saia o vigário.
-Que é isto, António? Tu vens fazer desordens à romaria?
-Perdoe, meu padrinho!
E contou em voz alta a origem da luta.
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“Mario: episodios das lutas civis portuguezas de 1820-1834” – Antonio Silva Gaio 1868