O infeliz menino órfão que, para defender o rebanho do seu malvado tutor, matou o lobo feroz, transformando-se em herói das aldeias.
“(…)Os nevões, o nevoeiro e o codo são a bem-aventurança dos lobos. Num desses dias, em que só havia brancura de morte por todos os lados, de repente, surgido não sabia de onde, o Gonçalo deu com os olhos num a abocar-lhe uma cordeira.
O cão de guarda ficara-se na povoação, atrás duma cadela na cainça. Alentado e de poucas festas, era ele que dava paz e segurança ao rebanho, numa vigilância guerreira, simbolicamente representada na coleira eriçada de pregos. Por isso, sem aquela protecção, o mesmo terror que tresmalhou as reses, siderou o pastor. Garanho de frio e de medo, o pobre coitado mal podia segurar no lódão. Bambeavam-lhe as pernas, e o coiro da cabeça queria despegar-se-lhe dos ossos. Mas, subitamente, por mistérios insondáveis da natureza humana, ergueu-se-lhe dentro do corpo acobardado uma onda de coragem. E arremeteu com tal fúria sobre o ladrão, que parecia uma fera a avançar sobre a outra.
– Grande como! – gritou, a dar solidariedade aos berros da ovelha agadanhada, enquanto levantava o varapau.
Filado à cernelha da churra, o salteador negava-se a largar a bocada. Ágil e teimoso, tentava arrastar a presa e furtar-se aos golpes. O gosto doce do sangue exacerbava-lhe a fome e assanhava-lhe a teimosia. Tanto montava as bordoadas choverem, como nada.- Cabrão! Cada vez mais desesperado, o cacete ia e vinha, numa raiva animada de minuto a minuto pela insólita duração da violência.
– Larápio dos infernos! Impávidos, os montes, numa neutralidade polar, assistiam à
luta. Nem os comoviam os balidos lancinantes da borrega, nem a angústia do garoto a lutar à sobreposse.
– Não a levas, nem que te danes!
O ímpeto inicial, fruto da espontânea reacção a qualquer desafio que nos é feito, dera lugar a uma serena e voluntariosa consciência protectora. Rei dos animais pela razão, o pastor perdera o sentido do perigo e o terror dele. Agora era um inexorável fiscal da ordem a impedir desmandos.
– Excomungado! Num salto imprevisto, o inimigo arredara-se de uma estadulhada que parecia certeira, e o cajado batera em falso num fragão.
– E esta?
Desiludido com a perícia da emenda, que foi rápida e lhe assentou em cheio no lombo do lobo hesitou. Mas quando se resignou a abandonar a vítima e se dispôs a fugir, o Gonçalo cortou-lhe a retirada.
– Tem paciência: agora ficas aqui! Disse, e redobrou a força das mocadas.- Não pões os queixos em mais nenhuma! Derreado, o lobo arreganhava os dentes inutilmente. Com mais três ou quatro amacios, estava liquidado, com a espinha quebrada, caído aos pés do vencedor.
Calhou ser dia de feira em S. Lourenço, e o Nicolau almocreve, que regressava a casa, dar de chofre com aquele espectáculo: o catraio, pálido de emoção e possuído ainda da fúria vingadora, a migar os ossos do agressor; este, esquadrilhado, a babar a neve do sangue da agonia.
– Com trinta milheiros de diabos! Tu onde arranjaste tanta coragem, rapaz?!
O pequeno limpou o ranho do nariz.
– Filho de quem o pariu! Olhe o que ele fez!
Sem vaidade, singelamente, mostrava a mola que o empurrara – a ovelha morta. O Nicolau, e logo a seguir Dornelo, é que não viam no feito senão a valentia na sua pureza original. Quantos e quantos, em semelhante situação, não teriam dado às de vila-diogo!
E a vida do Gonçalo transfigurou-se. Relatada a façanha, e provada com a presença da bicheza, que percorreu o povoado em procissão, um outro sol iluminou os seus gestos, as suas palavras, a sua solidão. Todos passaram a dar-lhe a dignidade que lhe negavam até ali. Os grandes queriam protegê-lo; os pequenos imitá-lo. A mestra protestou que era uma barbaridade deixá-lo analfabeto; o abade declarou que Ia ensinar-lhe o catecismo; a ração aparecia-lhe dobrada no bornal.(…)”
“Os contos da Montanha – Maio moço” Miguel Torga (1941)
http://www.wook.pt/ficha/contos-da-montanha/a/id/3469019