Lendo as obras de Oman, Weller ou Southey apenas ficamos a conhecer a Guerra Peninsular na perspetiva do comando britânico e, ainda assim, no que toca às operações da guerra convencional. A guerrilha, a sabotagem, a terra queimada entram mal nesta História. O povo e o país pouco mais são que o cenário ao fundo do palco onde é encenada a epopeia de Wellington e do seu exército. O mais que os portugueses do exército anglo-luso podem aspirar é o prémio para melhores atores secundários.
A guerrilha em Portugal foi mais dispersa (do que em Espanha) mas nem por isso impressionou menos os estrangeiros. A fúria dos camponeses nortenhos é assim descrita pelo general britânico Napier: «Veementes na cólera e estimulados […] pelas exortações dos seus padres, precipitam-se das montanhas como homens privados da razão e muitos irrompiam furiosamente pelos batalhões franceses, onde eram mortos. Outros […] rodeavam as montanhas e, caindo sobre a retaguarda, matavam dezenas de soldados tresmalhados e pilhavam as bagagens.»
O efeito da guerrilha em Portugal não foi negligenciável. Desgastou o invasor e obrigou-o a desviar das missões principais forças importantes, empenhadas em manter as guarnições em contacto e as estradas praticáveis.
Conta o barão de Thiébault, quartel-mestre do marechal Soult, a propósito do avanço sobre o Porto, em março de 1809: «A marcha do II Corpo pode comparar-se à de um navio no alto mar. Ao mesmo tempo que vai fendendo as ondas, estas vão-se cerrando atrás dele […] minutos depois da sua passagem, não resta nenhum vestígio dela.»
António José Telo, um dos autores citados na coletânea Guerra Peninsular, Novas Interpretações, vai mais longe: «Os autores ingleses que escreveram sobre a Guerra da Península só falam, praticamente, da atividade da primeira linha, pois era aí que estavam os britânicos. Muitos autores portugueses mais tradicionais cometem o mesmo tipo de erro e praticamente não mencionam ou consideram meramente acessória e quase folclórica a atividade de guerra irregular no teatro das operações de Portugal […] A guerra irregular foi um elemento muito importante para derrotar as Invasões Francesas em Portugal, embora, para que ela se pudesse exercer, fosse necessária a ação do exército de primeira linha.»
Povo
Guerrelheiro de varapau em Monumento- “Ao Povo e aos heróis da guerra peninsular 1808 – 1814” – Lisboa.
Em 1808 Portugal não tinha exército para opor à França, não o tinha antes de a invasão de Junot se concretizar, muito menos ele existia em meados de 1808. Mas havia a alma do povo. Povo que viveu longos meses preocupado em sobreviver a um amargo quotidiano, suportou a intrusão estrangeira porque assim lho exigiram, «engoliu» o abandono da Família Real, aguentou a colaboração das «classes superiores». Mas a nostalgia deu lugar à raiva, que cresceu com a obrigatoriedade de dar pão e cama a um intruso agressivo, contribuir com os seus parcos rendimentos para a ostentação e sustentação do invasor, tolerar sevícias de toda a ordem e a toda a hora ao usurpador, ver a Monarquia Lusitana ser extinta e substituída por um certo Napoleão. Sentimentos acumulados que foram sendo libertados e que acabaram por explodir de forma generalizada e incontrolável.
Como o povo não tinha um exército que o enquadrasse, tornou-se ele próprio o exército, camponeses, pescadores, carpinteiros, serralheiros, milícias, e ordenanças, oficiais, padres, tudo gente vilipendiada, ferida no seu orgulho, munidos de artefactos domésticos como machados, varapaus, roçadoras, foices, martelos, facas, uma ou outra arma de fogo. O povo era o exército, anárquico mas motivado, rudimentar mas disponível, violento mas generoso.
Decreto do Conselho de Regência (Dezembro de 1808):
“(…) Sou servido determinar que toda a Nação Portugueza se arme pelo modo que a cada hum for possível: que todos os homens, sem excepção de pessoa, ou classe, tenhão huma espingarda, ou pique, e todas as mais armas que as suas possibilidades permitirem. Que todas as cidades, villas, e povoações se fortifiquem, para que, reunindo-se aos seus habitantes todos os moradores dos lugares, aldêas, e casaes visinhos se defendão alli vigorosamente quando o inimigo se apresente. Que todas as companhias se reunam nas suas povoações todos os domingos e dias santos para se exercitarem no uso das armas que tiverem e nas evoluções militares, compreendendo todos os homens de idade de quinze anos até sessenta anos (… )”
Portanto, a partir de meados de 1808, o povo pegou em armas contra o exército regular de Junot e travou-se uma luta desigual, do fraco contra o forte, da anarquia contra a organização, da violência apaixonada contra a repressão. Travaram-se combates irregulares e estes «soldados sem uniforme» e «assassinos de estrada», como mais tarde chamou Massena a esta «turba popular», emboscavam os franceses a partir dos montes, assaltavam contingentes que marchavam imberbes em caminhos de difícil transitabilidade, acometiam de rompão vindos de matas densamente arborizadas.
Soult entrou em Portugal com cerca de 30.000 homens e retirou com perdas consideráveis de quase 50% sem que tais baixas se devam essencialmente a combates clássicos.
A Guerra Subversiva é tão antiga como a guerra em si; a Guerra Subversiva entronca geneticamente no ser português. De Viriato a Geraldo sem Pavor, de Deu-la-Deu Martins à padeira Brites de Almeida, do Frei Heitor Pinto a Jacinto Correia, portugueses há cujo ânimo apaixonado não deixam a Nação perecer, mesmo se eles perecerem.
“Adeus, meu Napoleão,
Que é quasi meia-noite,
Achaste em Portugal
Quem te désse muito açoite”
cit. Raul Brandão
“Invasões Francesas 200 anos.Mitos, Histórias e Protagonistas” Rui Cardoso
“A Invasão de Soult e A Reconquista de Chaves aos Franceses” Tenente-coronel Abílio Pires Lousada