O dia era de feira, em Fafe, e assim muito lavrador das cercanias por ali deambulava com o seu (ainda) inseparável varapau na mão. Diz quem lembra quem ouviu falar de décadas atrás que, no Norte minhoto, seria normal dar com uma boa rixa de paulada na hora de desfazer as tendas. Até que chegasse a Guarda e cada qual fosse para sua banda, mesmo com contas a ajustar em dias seguintes, podia até o sangue sair escorrido – ou, no mínimo, pisado… Isto que agora se chama «jogo do pau» era um divertimento muito sério…
Mas não, nesta feira de Fafe de há umas semanas atrás, uma feira franca, não havia já lugar à rixa de cajado. Foi tempo. Abundavam lavradores de pau na mão mas usando-o quase como quem põe a gravata ou a samarra: mais um adorno, uma companhia, um conforto, do que arma ou sinal visível de uma maioridade conquistada.
Apesar disso, muitos deles mostravam-se bem entendidos na arte de manejar o pau quando fizeram um largo redondo no terreiro para apreciar os jogadores vindos de todo o país. Incitando os mais rijos. Aplaudindo com critério rigoroso. mofando dos «verdes» ou dos mal convencidos, sorrindo de prazer à passagem de um golpe mais de mestre, evidenciavam um conhecimento, que só a experiência pode ter dado. O que não espanta, para mais em Fafe, terra de «justiça» antiga na base do cacete…
Pois foi assim: animando as feiras francas, a velha rixa foi substituída por um pacifico «Encontro Nacional de Jogo do Pau», misto de exibição e de luta, suficientemente regrada para que não saíssem ali umas quantas cabeças abertas mas razoavelmente verdadeira também, a pondo de alguns dos mais fogosos terem tido passagens rápidas pela enfermaria, fosse por um dedo negro, fosse por umas escoriações sem importância. «Acontece… Isto é para se jogar desta maneira… E só mostra que não estamos combinados»
«Combate» no Norte, «desporto» no Sul
Vieram um pouco de todo o país, de Alcarena, a Fafe, de Lisboa a Montalegre, de Santarém a Cabeceiras de Basto. Nascido embora no Minho, o «Jogo do pau» acabou por migrar para aqui e para ali, tendo encontrado poisos fortes em Trás-os-Montes e, mais tarde, o Ribatejo e em Lisboa.
Apesar de sempre «acompanhado», nestas viagem, por reputados mestres minhotos (itinerantes muitos deles), foi também adaptados aos lugares e aos gostos dos residentes. Ainda hoje, uma certa «formalização» decorrente de contactos habituais entre os clubes praticantes não conseguiu esbater completamente as diferenças entre as escolas do Norte e de Lisboa, mais voltada para o «combate» aquela, mais para o «desporto» esta. Afinal, cada jogo tem muito a ver com o sitio onde nasce e os porquês desse nascer.
«Dizer que nós, os de Bucos, somos violentos, que as nossas pancadas doem mesmo», fala mestre Orides Oliveira, impecável na sua camisa de puro linho de Cabeceiras de Basto. «Mas nós jogamos assim porque o jogo do pau é como é… Ao tempo em que se desenvolveu, o pau era a única arma de defesa e ataque. Para ser verdadeiro, é assim mesmo»
Claro que tudo isto se doseia com algum cuidado. Mas vale o principio: os homens de Bucos recusam, por regra, a simples exibição de pancadas combinadas, mesmo sabendo que poderiam apresentar jogos muito bonitos, muito espectaculares «O que é preciso – contrapropõem – é que o jogador aprenda bem a defender e a atacar. Sabendo, joga com qualquer parceiro, sem necessidade de combinações prévias. Dominando bem a técnica, não se magoa. Só uma ou outra coisinha sem importância»
O que fica da tradição
Característico da faceta mais «desportiva» de Lisboa parece ser o «trabalho de pernas», a que se atribui grande importância. A maior agilidade dos membros permite um jogo mais defensivo, enquanto o próprio ataque também toma modos menos «mortíferos», visando as pernas em vez da cabeça «Mas – Voltam os jogadores de Bucos – Já os antigos diziam que pancada à perna não faz mossa, é dar e fugir para trás… Pancada na perna nunca mata, diziam eles. Pancada na cabeça já é outra coisa…» Nortenhos de gema e afeitos à tradição mais pura, estes dedicam, portanto, o seu jogo ao ataque superior. E à respectiva defesa, pois não…
O culto desta pureza passa também pelo traje, onde sobressaem as lindíssimas camisas de velho linho em alguns jogadores do grupo das terras de Basto. Nem todos as têm, contudo, como não têm a bota preta baixa que substituem por vulgares sapatilhas: escorregar seria um perigo constante. Mas garantem que hão-de arranjar, tal como jaqueta ou colete que manda a regra. E faixa, naturalmente. Vermelha, correspondente no velho Minho, segundo lembra mestre Pedro Ferreira(Natural de Melgaço hoje radicado em Lisboa), ao rapaz namoradeiro, já jogador. O iniciado no jogo do pau, usá-la-ia verde, preta o homem casado, roxa o regedor da freguesia.
Alguns destes sinais, mais ou menos «adaptados» a gostos correntes ou a certas influências marciais externas, mantêm-se neste ou naquele grupo de «jogo do pau». Boa parte prefere, contudo, decerto por razões de desportiva eficácia, o normalíssimo fato de treino e os ténis da praxe.
Muitos ainda se lembram…
Em pleno centro de Fafe, como o povo entusiasta fazendo uma larga roda (outros repartem a atenção por populares corridas de cavalos na rua principal da cidade), sucedem-se as hábeis pauladas. «Ele é o contrajogo» (o preferido da escola lisboeta, jogando um contra um), ele é o «ladeado», o «da cruz», falseado ou corrido, o «de três» (ou «de dois falseado»), orgulho do Bucos, ele é o «e varrimento» ou «de varrer feiras», mais que todos característico, da escola minhota e da tradição nortenha (o próprio nome diz porquê…).
Ora Joga um contra um, ora jogam dois, costas com costas ou lado a lado, contra quantos aparecerem, ora jogam quatro cruzados, contra três. «Havia um homem lá em cima que garantia que, com o jogo de três, se defendia de três adversários ao mesmo tempo» explicam-nos «Não é fácil, mas consegue-se. E então só contra dois, aviam-se de certeza…».
Há miúdos que já manejam o varapau de lódão (a madeira por todos preferida) com mestria, jovens que, suando por todos os lados, aguentam ataques sucessivos, e mesmo velhos (maneira de dizer…) a quem os mais moços dificilmente trocam as voltas. São estes, os «maduros», que sobretudo entusiasmam a assistência, volta e meia recuada pelo brandir de paus mais arrebatados («tenha cuidado, amigo, a gente tem que se afastar senão leva mesmo…»). «Raça de velho!» – ouvir-se-á aqui e além, por entre incitamentos de aprovação e palmas satisfeitas, quando esses jogadores tiverem de suportar com brios investidas juvenis, valorosas mas ingénuas, pouco conhecedoras de todas as manhas com que se tece jogo tão antigo. «O que os rapazotes sabem, àqueles já há muito lhes esqueceu»
… outros começam a descobrir
Antigo, tradicional, desenraizado já do meio e das condições que lhe davam razão autêntica de vida, o «jogo do pau» nem, por isso se perdeu, e dá mesmo mostras de alguma revitalização, procurando ligar de direito ao lado de outros desportos conhecidos. Hoje em dia, praticam-no duas dezenas de grupos de todo o país, congregadas numa espécie de federação (Associação Portuguesa de Jogo do Pau) sediada em Lisboa. Mulheres começam também a render-se às suas artes, ainda que alguns clubes mais «duros» não as aceitem. («já experimentámos mas são muito lentas, não permitem o jogo em toda a sua verdade…»). Além disso, o jogo faz já parte da formação física de militares e de polícias, ensinado pro um dos mais conhecidos entusiastas da modalidade, o jovem Nuno Russo (ver caixa).
O passo, agora, é a consagração como desporto, com órgão próprios, regras, competições habituais, campeonato, tudo isso. Muito recentemente já depois do Encontro realizado em Fafe, teve lugar, em Lisboa, o «1.º Torneio Nacional de Jogo do Pau» (apenas na modalidade de um contra um), com participantes do Norte, Centro e Sul do país
«proximamente – diz Nuno Russo – faremos também uma selecção nacional para combater contra selecções de outros países onde também há jogo do pau: França, China, Tailândia…»
«Ó irmão! Junta costa com costa!»
A oficialização do jogo como modalidade desportiva, em termos muito semelhantes à esgrima (há até quem lhe chame «a esgrima nacional»), obrigou os praticante ao uso de um uniforme especial, destinado a proteger o corpo dos golpes do adversário. Tal mudança parece não ter caído muito bem entre alguns puristas, partidários de que o «jogo do pau» se jogue como sempre se jogou, cabeça descoberta e mangas arregaçadas. De outro modo, receiam a sua mera exibição sem verdade. «Pelo contrário – contrapõem os defensores do desporto – a utilização de protecções permite jogar com o pau sem restrições, permite recorrer a todas as pancadas, mesmo às mais violentas, sem receio de magoar o adversário. Com protecção manteremos a técnica do jogo em toda a sua pureza e em toda a sua força competitiva.»
Quem já tenha visto os jogadores de pau pesadamente uniformizados (e a televisão passou há tempos umas poucas imagens), terá achado meio estranho, sobretudo sabendo como ele se joga ainda um pouco por ai. Será, no entanto, talvez o preço da sobrevivência e da maior divulgação de uma modalidade bem portuguesa de artes marciais, que com vantagem se substitui às outras maciçamente importadas. Mas, claro, nada disso terá já muito a ver com a descrição, feita por um cronista galego, de uma luta de fins do século passado:
«Passou-se a coisa na feira de Porqueiróz, feira de ano, em que se juntaram feirantes de toda a comarca, e fora dela. Os das diferentes freguesias iam com o seu gado e com os seus frutos, fazendo-se uma das melhores feiras daquele tempo. Uma vez, ignora-se porquê, começou uma rixa entre os feirantes e dois portugueses que, vizinhos moradores naquelas terras haviam já uns tempos, acudiram a Porqueiróz. A rixa assanhou-se e chegou a hora dos paus. Um dos portugueses, ao ver o perigo, berrou ao companheiro: «Ó irmão, Junta costa com costa!»
«Postos deste jeito, cada um com o seu varapau, defenderam-se os dois sozinhos dos que atacavam. Durante muito tempo mantiveram-se firmes, a despeito dos muitos atacantes; pouco a pouco, foram-se desfazendo os adversários, uns feridos e outros acobardados. O triunfo coube-lhes a eles, que, sozinhos, desfizeram a feira. Tal era a superioridade que lhes dava a sua perícia em Jogar o Pau!»
Joaquim Fidalgo – EXPRESSO, Sábado, 13 de Setembro de 1986