O Mestre de Esgrima

Aquelle mulatão de ganforína
erriçáda e que lembra a carapinha
de um negro do Bihé — diz-me a visinha —
que é «bom vivant» e toca concertina.

Jogo do páo e do florête ensina!…
O figurão tem lábia, o «apomb» a linha!
Mas, por pagóde, um aio da Rainha
fez-lhe, uma vêz, presente de uma tina.

Vai ao palácio de um fidalgo á noute
dar-lhe lições de esgrima— E quem se afoute
a d’isto mal cuidar, dirão que é pêta…

Com os fidalgos ceia, joga, abanca.
E, emquanto améstra o esposo na arma branca,
— amestra a fidalguinha na arma preta.

“Mefistófeles em Lisboa” Gomes Leal – 1907

O moinho, ao contrário do jogo livre, é uma sequencia repetida e predeterminada de ataques, em que são praticadas as transições entre defesa e contra ataque. Como neste exercício, já é conhecida pelos praticantes a sequencia de ataques, estes podem ser feitos com alguma segurança, aumentando a velocidade e praticando assim as transições.

EN:
Whe
“windmill” drill in jogo do pau is different to freeplay, in that it is a pre arranged looping sequence of parry and counter attacks. Because the sequence is known by the fencers, this exercise can be done with some safety, and the speed can this way be higher, to practice the transition from parry to counter attack.

Foi publicado finalmente uma versão do manual de esgrima de Luis Godinho de 1599. Este trabalho, na minha opinião é o que mais semelhanças apresenta ao jogo do pau português, na vertente de espada a duas mãos, tendo descrições detalhadas de encadeamentos contra dois ou
mais adversários, geralmente vindos de trás e diante, exatamente como se
faz no jogo do norte.

Variando desde situações, como em ruas muito apertadas, até estando cercado em campo aberto. Sendo assim, não uma mera
curiosidade ou uma coincidência de um ou outro paragrafo, mas uma serie
de elementos pensados e construidos para um programa de esgrima em
inferioridade numérica bastante completo, como no caso do jogo do pau
português, e que se vê em tão poucas outras artes de combate, quer
antigas quer modernas.

Existem certamente muitos outros manuais de esgrima portugueses,
espanhóis e por todo o mundo, mais recentes, mas este é dos poucos que
tem uma secção tão focada no combate em inferioridade numérica, prática
que foi votada ao esquecimento em trabalhos mais recentes de esgrima,
mas que não foi esquecida por quem necessitava dela para se defender, a
varapau.

http://www.ageaeditora.com/
And… finally! After a huge delay, we are proud to present Domingo Luis Godinho’s «Arte de Esgrima», the only known complete book on the
«old school» iberian swordplay, which
was so thoroughly wiped out by the emergent Verdadeira Destreza that
this text is one of the few sources that remained.

The book is 275 pages long, of which about 230 comprise the original
text, enhanced with an introduction, context, annalysis and
transcription notes.  The original text itself delivers
instructions on single (rapier) sword, sword and rotella, sword and
buckler, twin swords, sword and dagger, sword and cape, and the longest
known text on the iberian montante.

Godinho originally wrote the
book in a rough spanish ladden with portuguese expressions and
mannerisms. We have normalized the text to modern spanish, expecting to
make is thus more accessible. A must for researchers of iberian fencing traditions!

mindhost:

AGEA Editora are in the process of publishing the “Arte de Esgrima” by  Domingo Luis Godinho, one of the few complete sources of esgrima vulgar or esgrima común (vulgar or common fencing), the Iberian swordplay that was replaced by La Verdadera Destreza.

The transcription and translation work was carried by Manuel Valle Ortiz and Tim Rivera, aided by Jaime Girona, Steve Hick and Eric Myers.

O Cinematógrafo Português

Aurélio Paz dos Reis, pioneiro do cinema em Portugal realizou no século XIX vários quadros que são dos mais antigos registos de vídeo realizados na nossa terra, um dos quais era o “Jogo do pau”, que parece ter tido grande exito com o publico.O espectáculo de apresentação decorreu a 12 de Novembro de 1896 (Porto, Teatro do Príncipe Real). Notícias na imprensa:

O Primeiro de Janeiro:

  • «Hontem apresentação do kinetórgrapho português, pelo Sr. Aurélio
    Paz dos Reis teve êxito completo. Tanto as vistas estrangeiras como as
    nacionais, d’estes principalmente «O jogo do Pau» e a «Saída das
    Costureiras da Fábrica Confiança» foram acolhidas com grandes salvas de
    palmas».

Já na villa se fallava do «bando do Lobo», que infestava a deshoras as ruas de Guimarães, e alvoroçava os pacíficos habitantes com a cantoria de glosas chocarreiras.

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Em contraposição a este bando organizou-se outro, capitaneado por um cutileiro de appellido Raposo.

Os bandos que promoviam arruidos foram durante séculos um «sport» predilecto da mocidade portugueza, a despeito das «Ordenações», que encarregavam ao corregedor da comarca a missão de averiguar se das «competências ou bandos se seguiam pelejas, revoltas, mortes ou outros males e damnos».

Mas a tolerância dos costumes e a própria organização do serviço dos quadrilheiros, que eram tirados d’entre os cidadãos, e não estavam para arriscar a pelle, nem perder as noites, faziam que continuasse impunemente a tradição dos bandos a despeito das «Ordenações.»

A lei, em Portugal, tem sido sempre lettra morta.

Houve por vezes conflicto entre os dois bandos, que a ronda dos quadrilheiros seria impotente, ainda quando o tentasse, para conter em respeito. Ficavam rachadas algumas cabeças, porque os varapaus de lódão, principal arma do minhoto, ensarilhavam alto com o fim de inutilizar a victima, procurando-Ihe o craneo.

O bando do Raposo era talvez mais esforçado que o do Lobo, mas não provava tanta petulância, nem tanta disciplina.

E a razão estava em que, no primeiro bando, todos se julgavam tão valentes como o chefe, ao passo que o Lobo, entre a sua gente, dispunha de superioridade que lhe provinha do talento poético, da odyssea amorosa pelo Porto e Lisboa, das suas fortunas e desastres com a aventureira de Cantão, e até da pobreza em que se encontrava, como todos os bohemios celebres.

Não era a vara de lódão a única arma contundente que o bando do Lobo sabia manejar. O seu chefe, improvisador temível, língua solta e maligna, possuía outra arma talvez mais perigosa para os adversários: era o verso, que chega ao interior dos conventos, dos palácios, das tabernas e alcouces, muito mais elástico, portanto, do que um varapau qualquer.

“O lobo da Mandragôa” Alberto Pimentel, 1904

O Cavaleiro e o Peão

É curiosa esta época ( séc. XIII / XIV ), pela porfiada luta, travada entre o armamento do cavaleiro e o do peão. Este ultimo não podendo equiparar-se ao primeiro na armadura, já pela escassez de meios, já pela necessidade de conservar a agilidade indispensável para as marchas e para combater a pé, desforrava-se nas armas de arremesso, e ainda mais nas de fuste, as quais nesta época passam por uma verdadeira transformação.

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Principia aqui essa longa serie de armas formidáveis nas mãos vigorosas da peonagem rude — armas que tiveram todas a sua esgrima especial, e de cuja eficácia poderá julgar o leitor que tiver, em algumas das nossas feiras ou festas campestres, visto como o guapo valentão sabe varrer o terreno, abrindo caminho com os sarilhos do seu varapau.

“Armaria” – 1885 David Corrazi – Editor.
https://archive.org/stream/armariaillustrad00lisb

MANUEL BRAVO E JOSÉ MANSO

Bravo – era era homem gôrdo,
Altivo, muito insolente;
Com todo o mundo gritava,
Arrotando de valente.

Manso era baixo e magro,
Humilde bem comportado;
Cordato sempre com todos,
De todos era estimado.

Ambos visinhos moravam,
E Bravo a todo o momento
Levava a implicar com Manso,
Que o soffria paxorrento!…

Um dia que a paciencia
De Manso foi esgotada,
Pegou este n’um cacete
Deu lhe muita bordoada!!

Trocaram se logo as scenas
Ante o justo desaggravo!..
O Bravo então ficou Manso
E o Manso tornou-se Bravo!!!

-José Antonio Frederico da Silva – 1837

Deslocamento em jogo / Body displacement in freeplay

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Sequencia de 6 defesas e contra ataques / Sequence of 6 parry and  counters

PT:
Como podemos ver na imagem, o descolamento do corpo em jogo livre deve ser constante, havendo sempre um ajuste da distancia na defesa, sendo que o ataque é sempre realizado para bater. O jogador que ataca, avança para chegar ao alvo, mas o que defende recua, mantendo-se seguro. Esta não é uma regra absoluta, pois quem defende pode conseguir defender no lugar ou mesmo a avançar, mas este deslocamento base, permite uma maior segurança, e é o mais comummente utilizado.

Quando se vê o video normalmente, pode parecer que as varas so tocam uma na outra e que se esta a atacar para o ar. Isso seria verdade se não houvesse deslocamento, mas neste caso podemos ver que os ataques são feitos para o corpo, e é o constante deslocamento que permite uma defesa segura.

Note que deslocamento do corpo não é apenas deslocamento do pé, é possível mover o pé sem quase mexer o corpo, mas o que se quer aqui é deslocar tanto o corpo como o pé.

EN:
As we can see in the image, the movement of the body is constant in traditional freeplay, there is always an adjustment by the defender, and the attack is done to reach him. The fencer that attacks moves forward to reach the target, but the defender retreats back, keeping a safe distance. This is not a “rule of the game”, the defender could stay in place or even move forward when parrying if he had the skill for that, but this displacement allows more safety and is the most commonly used.

When the video is played normally it might look like the fencers are striking out of range and only hitting to the staffs. That would be true if they didn’t move their body and just stayed in place hitting out of distance, but this is not the case, since the strikes are made to the target and the body displacement of the defender is what creates the safe distance.

Note that body displacement is not the same as just footwork, it is possible to move the feet without barely moving the body, that is not what we see here, what is done in jogo do pau is the displacement of the body as much as the feet.

Brás Garcia de Mascarenhas

Em 1922, António de Vasconcelos, coloca o personagem histórico Brás Garcia de Mascarenhas(~1640), a ser auxiliado por valentes jogadores de pau. Os mesmos jogadores de pau do tempo de António de Vasconcellos, que pela descrição do texto os deve ter visto e conhecido no seu tempo, como bravos varredores de feiras. Para o autor, neste “estudo de investigação histórica”, pareceu-lhe razoável inserir jogadores de pau cerca de três séculos antes, num tempo e local onde esta prática faria o mesmo sentido que ainda tinha no inicio do século XX.

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(Brás Garcia de Mascarenhas)

Chega o dia indicado para a posse e banquete do intruso prior de Travanca.

Brás Garcia, acompanhado de alguns amigos armados com as suas espadas, e provavelmente levando consigo alguns criados, bons jogadores de pau, munidos de cacetes, constituindo todos uma pequena guerrilha de muy poucas pessoas, saem muito em segredo de Avô pela madrugada, e percorrem, com as devidas reservas e cautelas, os trinta e tantos quilómetros que, pelos caminhos velhos, medeiam entre Avô e Travanca. Teem o cuidado de se desviar dos povoados e de evitar que sejam vistos. Chegados a Travanca, cortam a direito em direcção à igreja, sem serem avistados da povoação, e surgem inesperadamente junto do presbitério, ao pé da carvalha que descrevemos.
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O acto da posse litúrgica havia de realizar-se pela tarde, depois do banquete, e este encontrava-se no seu auge. Aos ouvidos de Brás e dos companheiros chegavam as manifestações da ruidosa alegria dos convivas, e facilmente se notava que eram em número muitíssimo maior do que os que constituíam a guerrilha. Ouvia-se alem disso o vozear da gente do povo e da criadagem, que do outro lado da casa, no páteo da residência e no contíguo adro fronteiro ao templo, enquanto esperavam pela festa da igreja, com seus folgares ruidosos iam fazendo coro aos vivas e brindes que partiam da sala de jantar.

Torna-se pois complicado o caso. Acometer toda essa gente, embora de surpresa, seria um acto de louca temeridade.

Mas era tarde para hesitações, e Brás não era homem que recuasse. Não espera por mais.

Como um furacão entram todos pela porta dentro, e de espada em punho uns, outros de cacetes erguidos, caem sobre os convivas espadeirando-os e contundindo-os. Alguns conseguem saltar pelas janelas e pôr-se em fuga ; outros resistem, mas debalde. Uma confusão medonha, um motim infernal. Pelo chão, por baixo da mesa, rolam corpos feridos gravemente, jazem outros sem movimento.

Alguns dos convivas haviam-se escapado do presbitério para a que dá acesso por esta banda ao páteo da residência prioral. Esta fica por trás da carvalha ; e lá ao fundo, na extremidade da direita, descortina-se o telhado e parede da igreja, onde supuseram encontrar asilo inviolável. Faliu-lhes o cálculo. Ali mesmo foram feridos e espancados, ficando assim poluída a casa do Senhor, que ipso facto se tornou inapta para a celebração dos actos cultuais. Esta a explicação que tem o caso de encontrar-mos nos últimos meses de 1640 fechada ao culto a igreja paroquial de Travanca, e os ofícios divinos, que nela deviam realizar-se, a serem celebrados na igreja de Farinha-Podre, hoje S. Pedro de Alva.

Quando toda a resistência dentro de casa tinha acabado, os agressores descera ao páteo, para dali e do adro varrerem a populaça e criadagem. Então é que iam mostrar a sua valentia e a sua agilidade e perícia no jogo do pau os caceteiros do rancho, que levariam deante de si centenas de pessoas que lá estivessem. Mas quê ? Não encontraram ninguém. O pavor tinha-se apoderado de toda essa gente. Apenas ouviram os primeiros gritos de sobresalto e dor, acompanhados do tenir de ferros na sala de jantar, apenas viram os primeiros fugitivos saltarem das janelas e pôr-se ao fresco numa carreira desordenada, um pavor colectivo se apoderou deles, e, não esperando o próximo momento de entrarem em função, deixaram o adro e o páteo desertos, num abrir e fechar de olhos.

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“Brás Garcia Mascarenhas; estudo de investigação histórica” – António Garcia Ribeiro de Vasconcelos – 1922