É um grande jogador de pau, ali onde o vêem; valente como as armas; leve como pós de sapatos. Quem agora aí anda na berra, é êle. É o galo da terra.
“Duas palavras sobre o jogo do pau” Frederico Hopffer, 1924
“Duas palavras sobre o jogo do pau” – Frederico Hopffer, 1924
Soldados portugueses executam demonstração do Jogo do pau
Roffey Camp, Horsham, Sussex, Inglaterra,
15 de Agosto de 1918
Fonte: http://www.iwm.org.uk
Em tempos um professor de sociologia, ao tentar explicar que certas ideias feitas resultam de enganos, repetições e desconhecimento, e não propriamente duma tradução da realidade no senso comum, deu o exemplo da China e da proverbial “paciência de chinês”. Ele, que conhecia bem o país, e que o visitara ainda antes de ele se ter tornado a fábrica do mundo, dizia que encontrar um chinês paciente não era tarefa fácil, mesmo em tempos bem mais controlados, anteriores a Deng Xiaoping. A cultura chinesa não é uma cultura de silêncio, de calma e de rituais longos e silenciosos. As cidades chinesas eram locais bulíciosos, barulhentos, dizia ele, onde à mínima coisa havia logo uma grande possibilidade de desatar tudo à estalada, ao murro e ao grito.
A ideia do chinês introspectivo, meditativo, dotado duma sabedoria milenar eram uma concepção criada no ocidente, baseada não numa experiência real e pessoal (bastava ler a “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, um dos primeiros relatos na primeira pessoa de um ocidental no Império do Meio) mas antes numa mistura de informações, oriundas quer de outros países asiáticos ( do Japão, nomeadamente), quer de contactos com aspectos particulares da cultura chinesa, como o mundo burocrático imperial, a filosofia taoista e a religião budista. Tudo isto, bem amalgamado e repetido vezes sem conta junto dum mundo ocidental que nunca vira a China, e para quem tudo se confundia no Oriente, permitira a convicção profunda ( e falsa) que os chineses são, de uma maneira geral, calados, pacientes e superiormente organizados.
Essa aula, que bem me divertiu, vem-me com frequência à memória sempre que esbarro com o lugar-comum de Portugal como país de brandos costumes, o do português como povo sereno.
Se nos dias que correm a coisa (momentaneamente, talvez) até parece ser assim, afirmar tal historicamente é algo que não aguenta a confrontação com a realidade.
Um dos aspectos em que o Estado Novo foi mais bem sucedido foi no profundo apaziguamento do país, e na efectiva implementação do monopólio da força por parte do Estado. Para tal, criou um aparelho repressivo assente nas forças policiais que, ao longo do tempo, conseguiu fazer chegar a todos os recantos do território, e fez silenciar através da censura os relatos de alterações de ordem pública. Esta percepção de que nada acontecia, associada à certeza de um uso indiscriminado da força policial em caso de conflito, e a um sistema judicial que, em caso algum, questionaria as forças policiais, resultaram no referido apaziguamento.
Mas extrapolar esse facto para tempos anteriores é algo muito errado. Antes do sucesso do Estado Novo, os brandos costumes e o povo sereno só podem ser retóricos. Portugal era um país em alvoroço constante. Entre guerras civis, um regicídio, vários assassinatos políticos, duelos de deputados, revoltas, guerrilhas e salteadores, muito pode ser dito sobre os dois últimos séculos, para não ir mais longe.
Quando, no meio da conturbada primeira república, se decidiu enviar um Corpo expedicionário para as trincheiras da primeira guerra mundial, as tropas apressadamente reunidas, e instruídas no Ribatejo, foram depois sujeitas,em Inglaterra e em França sobretudo, a novo processo de instrução militar para as habilitar para a realidade dos combates nas trincheiras.
Aí, alguns relatos indicam que os soldados portugueses espantaram os seus instrutores britânicos pela relativa facilidade com se adaptavam às técnicas de luta com baioneta, ao combate próximo nas trincheiras. De pequena estatura na sua maioria, vinham de realidades pré-industriais, onde andar à luta era quase um desporto entre aldeias. No Norte de Portugal, em particular, praticava-se uma forma de arte marcial, o chamado jogo do pau, cujas demonstrações em terras de França e Inglaterra provocaram a curiosidade dos oficiais aliados, que as filmaram e fotografaram.
Portugal, antes do Estado Novo, não era bem um local de brandos costumes. Era simplesmente um país habituado a andar à paulada.
Júlio Assis Ribeiro em: http://naomemexamnosjpegs.blogspot.pt/2013/07/a-paulada.html
Ver também: https://www.youtube.com/watch?v=g_Xyx4iG_kc
Associação Desportiva e Cultural de S. João Baptista de Bucos
As suas origens remontam ao início do século vinte, anos 30, altura em que o “mestre” Calado, do vizinho concelho de Vieira do Minho, iniciou muitos jovens de Bucos, no manejo do pau.
Mais tarde, Adelino Barroso, de Vila Boa de Bucos, continuou a tarefa já iniciada, transformando muitos rapazes em hábeis jogadores.
Posteriormente, Ernesto dos Santos, que aprendera com o “mestre“ Calado, cimentou os alicerces da “Escola” de Bucos ensinando essa “arte” a todos os interessados. Por essa mesma altura, Domingos Calado (filho do já citado “mestre“ Calado, também ensinou na nossa terra.
Dos ensinamentos desse mestre “caceteiro” resultou um grupo de bons jogadores, alguns dos quais, anos volvidos, em 1966, actuaram em Cabeceiras de Basto para uma cadeia de televisão alemã.
Definitivamente legalizada, é em 1980 que a Associação Desportiva e Cultural de S. João Baptista de Bucos se relançou, aquando da participação na festa de S. Bartolomeu em Cavez, onde foi filmada pela RTP pela 1ª vez.
A partir daí, jamais parou esforçando-se afanosamente por mostrar, do modo o mais genuíno possível, a técnica nortenha do jogo do pau. As suas ”pauladas” têm soado por todo o país e até no estrangeiro. Também não tem descurado a formação, apostando na iniciação ao jogo por parte dos mais novos.
Conto: António Fogueira, Rio Tinto e o Fanfarra
Conto de Teixeira de Queiroz, com cena final de luta com varapau.
Pode-se ler neste link, o conto completo, ou aqui, a parte final com o combate.
VII
O António Figueira saiu, ao escurecer, de Viana, com ideia de chegar, na manhã seguinte, à sua freguesia, fazendo, assim, todo o caminho de noite. Não havia luar e as estreitas, quase tão vivas como nas límpidas noites de inverno, difundiam na amplidão luz suficiente para, a pequena distancia, se poder apreciar o volto das pessoas, a grandeza das árvores e dos penedos próximos. Quando ele saiu de Viana, com muita gente conhecida, despediu-se da Mariana Ripa até à próxima feira dos nove. Pelo caminho, os seus companheiros, foram derivando para outros destinos e, quando era pela volta da meia noite, o Fogueira caminhava só, destacando-se, no silencio ambiente, como uma cor viva se .destaca num fundo escuro, o saliente resfolgar da sua égua, que trotava num passo moderado e cadente, batendo com as ferraduras nas pedras avulsas do caminho. A estrada que seguia era estreita, orlada de árvores copadas, o que aumentava a escuridão … O Fogueira, apesar de não ser medroso, sentia, em volta de si, um certo vazio que lhe dava uma sensação de desamparo… de abandono!… Inconscientemente principiou a pensar num mau encontro, a lembrar-se que lhe podiam vir ao caminho alguns ladrões, se por acaso soubessem que o seu cinto ia tão bem recheado de soberanos ! Quando se surpreendeu dominado por estas ideias extravagantes, sorriu incredulamente… Bem sabia não haver por ali ladrões, e que somente, uma ou outra vez, se roubava uma poçada de água, para valer a algum campo de milho, que se mirrava de secura. Mas dado mesmo o caso que lhe aparecesse um ou dois ladrões!? Não era ele um dos melhores jogadores de pau das feiras minhotas?! O seu Iodam não tinha uma choupa de romper um peito?! A sua égua não era bastante impetuosa, para abrir caminho por entre um regimento de soldados, e bastante fugideíra, para não ser pilhada pelo melhor cavalo a toda-a-brida?!… Porém, como lhe veio esta ideia esquisita de se lembrar de ladrões?! Gomo diabo lhe deu a caturrice para ali?! Não sabia, mas a verdade é que lhe desagradou o encontrar-se a pensar em tais amigos quando era certo, que tinha o cinto atulhado de dinheiro. .. No momento em que elle se sorria doestas asneiras, chegava a um pequeno largo, onde havia uns carvalhos antigos, cuja ramagem copada lhe deu facilmente uma impressão amedrontadora, como a de uma igreja, ou de um cemitério que, numa estrada rural se encontra desprevidamente! O silencio aqui era simplesmente interrompido pelo som metálico de uma pequena fonte, que pingava junto de um muro. O Figueira sentiu-se neste momento mais isolado, e, talvez, em virtude da impressão desagradável que este sentimento de desamparo lhe causou, atendeu com mais inteligência a tudo que o cercava. Um tremor incaracterístico mas enérgico, irradiou-lhe em todo o corpo; porque dois homens, dando largas passadas de tragédia de paus argolados levantados ao ar, se lhe oposeram com arrogância, dizendo com voz soturna:
—Faça lá alto, ó seu amigo!
A égua susteve-se logo, desconfiada, com um olhar inquieto, a cabeça levantada, as orelhas espertas! O Fogueira estremeceu involuntariamente, um formigueiro rabiou-lhe ao longo da espinha, ficando numa espécie de espasmo, depois de ouvir aquela voz rouca, atinhada, uma voz de timbre seu conhecido, mas que, neste momento, não podia dizer de quem era… Toda esta cena rápida e inesperada, deu-lhe uma ideia pavorosa de cousa sinistra, da intervenção do demónio nos sucessos da sua vida, de acontecimento só explicável em historias de bruxas!… Porém, recuperando a serenidade, reconheceu que eram realmente dois homens mascarados, que se lhe opunham no caminho e que deveria por força ser, para o roubarem… Seguindo o próprio instinto tirou o seu pau ferrado de entre a perna e o albardão, levantou-o para eles com arrogância e dizendo «qual alto, nem meio alto!» esporeou energicamente a égua para romper com velocidade por entre os dois mascarados. O animal, que era fino e sensível, deu um corcovo, indo esbarrar-se contra uma corda que estava intencionalmente atravessada no caminho e, o Fogueira, ficou desmontado; mas com tanta felicidade que, quando os agressores iam a cair sobre ele, encontraram-no de pé fazendo-lhes face, com o pau em guarda, enquanto que, a distancia, se ouviam as ferraduras da sua égua batendo nas lages da calçada.
Este momento de silencio foi tenebroso! Havia dois homens contra um, na escuridade indecisa de um caminho orlado de árvores que se definiam no ar com os seus enfolhamentos volumosos e espessos! O Fogueira esperava um ataque simultâneo da parte dos salteadores, e já calculava defender-se, de costas contra o muro, sustentando-se assim até poder bimbar o primeiro, para depois se encontrar com o segundo que acometeria com força. Mas um dos mascarados, baixando o pau com desdém, disse numa voz trocista de compaixão, para lhe mostrar que o tinha compreendido:
— Home, não te faças fino, que te enganas. Deita ai a marmelada que levas no cinto e vai-te c’os demónios, se não pode-te sair a cousa torta!
Esta intimação irónica e desprezadora ofendeu, mais do que tudo, o Fogueira, insuflando-lhe uma energia raivosa contra os dois agressores. Não o conheceriam eles?! Não saberiam que era o melhor jogador do pau das feiras minhotas?!— disse consigo este sanguíneo estouvado! Pois estavam em momento de o experimentarem!—pensou num silêncio rancoroso e indomável. E logo depois, num ímpeto leonino e sem táctica cresceu agressivamente para ambos, tomado de um frenesim tão diabólico, que os fez recuar alguns passos neste primeiro ataque. O Rio Tinto disse-lhe com uma voz já menos disfarçada, aparando-lhe as pauladas: —Ah! queres à valentona?!… Vamos então lá a ver!…
Houve um instante de hesitação, um momento instintivo de pausa, em que de parte a parte se pensou rapidamente em acometer com a maior energia. O Figueira era bastante conhecido, como jogador temível. O Rio Tinto e o Fanfarra sabiam-no melhor do que ninguém; porque muitas vezes se tinham encontrado emparceirados em desordens e, talvez neste momento, se lembrassem que, um deles, devia à presteza e generosidade deste valente rapaz, não ter ficado morto no S. Sebastião de Vila Nova!… Porém, apesar disto, no momento actual, eles eram dois contra um! A enorme sede de vingança, e a natural maldade e valentia incontestada dos dois salteadores, davam-lhes reconhecidas vantagens. O Fogueira, ainda que fora de si, já tinha conhecido pela guarda dos adversários que eles sabiam do negocio: — reconheceu que eram jogadores. Mas o seu natural impetuoso e imprevidente levou-o a sair da defesa, com o fim de os atacar, e com a ideia de fazer a um deles, a sua finta predilecta á bôcado estômago; empregando, ainda assim, muito olho, para não perder a protecção do muro, que lhe guardava as costas. Na soturnidade da noite, profonda e cava, por entre os espessos troncos de carvalhos foIhosos, no meio do silencio imponente das montanhas vizinhas que se levantavam na amplidão, ouviam-se os estalidos secos e breves dos paus, batendo uns nos outros, por entre as respirações de cansaço cortadas de palavras injuriosas e cheias do rancor dos combatentes! No escuro, a que eles já tinham habituado os olhos, os seus corpos furtavam-se habilmente aos golpes, saltando de lado para lado, sempre numa incerteza de posição! O Fogueira, como era só, precisava empregar maior esforço e tal raiva que, no fim de cinco minutos, fez saltar o pau do Rio Tinto, para lhe atirar a pontuada ao estômago! Este porém, como lhe conhecia bem o jogo, deu um largo salto de recuo e, em vez de ir buscar outra vez a sua arma, meteu rapidamente a mão ao bolso interior da vestia, tirando a sua comprida navalha que abriu de pronto e disse na voz natural:
—Agora há de ser com esta. Ataca com força rapaz! — gritou ao companheiro.
Principiou um desses momentos terrivelmente sinistros, em que entre dois homens se estabelece esta negra ideia— de se matarem um ao outro! O Fogueira conheceu imediatamente o perigo, quando viu faiscar a lamina da navalha, que mesmo à luz tíbia das estrelas brilhara aos seus olhos, como um relâmpago! Nesta luta obscura, que se passava no silêncio de uma noite de primavera e na tranquilidade de um caminho rural, havia muita ferocidade condensada I O António Fogueira tinha, até ali, sustentado os ataques dos adversários; mas, agora, para se furtar á navalha de um assassino, só o poderia conseguir inutilisando o Fanfarra, que o ensarilhava de cada vez mais, fazendo-lhe um jogo de mil demónios I Por isso, com a ligeireza de um cabrito montez, saltava para a direita, para a esquerda, para a frente, para traz… evitando os dois inimigos que o procuravam com pertinácia … com fúria! O Rio Tinto praguejava, ameaçava-o com voz rouca… quasi natural … O Fogueira te-lo-ía conhecido em outras circunstancias; mas, em momento tão apertado, nem reflexão tinha para isso… As forças eram desiguais… o filho da Engrácia enfraquecia-se visivelmente, e a ele, que era corajoso, veio-lhe a ideia de um socorro providencial… Sentia-se já extenuado e agredido de cada vez com mais tenecidade, com mais rancor, com maior ímpeto Aquele que o procurava por todos os modos, para o anavalhar, pronunciou com voz clara, já sem pretensões de disfarce:
—Agora Fanfarra, deixa-me c’o ele!…
E logo em seguida, o Fogueira, sentiu-se abraçado pelo seu inimigo, a quem desmascarou no instante em que a comprida navalha lhe entrava no coração, rasgando-lho com tal força, que só teve tempo de dizer num suspiro final:
— Ah! ladrão de Rio Tinto, que me matastes!
Foi este o último grito de angustia e as ultimas palavras que proferiu!… O seu corpo deixou-se cair no chão, desfalecido, com os braços pendentes e o sangue a golfar-lhe pela ferida e pela boca! Ainda teve alguns movimentos convulsivos, acompanhados de um rouco respirar stertoroso, com borbulhões de espuma sanguínea pelo nariz! A sua energia ainda manifestou um instante de louca reabilitação, pretendendo, aquele corpo moribundo, levantar-se sobre os joelhos! Mas a final caiu brutamente, ficando exânime, insensível, de bruços sobre a terra!…
O Rio Tinto e o Fanfarra conservaram-se, durante um longo minuto, a olhar para o cadáver, silenciosos, estúpidos, numa impotência inexplicável, quase sem poderem fugir! Sentiam-se agora mais covardes, mais irresolutos, depois de consumado o crime! Não tendo uma precisa compreensão das circunstancias, esperavam, um tanto passivamente, qualquer castigo que viria do alto, de uma implacável região de justiça, para os punir!… Alguém que, por casualidade, os tivesse visto, poderia aproximar-se sem que eles se escondessem ; pois que, durante este minuto sinistro, conservavam-se sisudos, calados, a olhar um para o outro, com os braços pendentes!… Mas, logo depois, o Rio Tinto, que era mais perverso e malvado, recuperando com certa prontidão a sua podre consciência, disse, em voz insultante, para o cadáver:
— Ora ai tens! … É assim que se ensinam os pimpões!…
E permanecendo algum tempo com o ouvido á escuta, para que alguém se não aproximasse inesperadamente observou em seguida ao Fanfarra que, dominado por um terror supersticioso, escutava o som metálico da agua da fonte:
— Não tenhas medo… Não é ninguém… É ali a pingar…
Porém, como o Fanfarra, ainda se conservava nesta insensibilidade estúpida e incompressível o Rio Tinto despertou-o dizendo-lhe, com um aceno imperativo de cabeça :
—Então?!
O outro troquilha encolheu os ombros, com certo desleixo, indicando que fizesse ele o que quisesse, que estava pronto para tudo… O assassino do Fogueira, dando movimentos desengonçados ao tronco e à cabeça, proferiu com certa ironia feroz e temível, condenando aquele estado de arrependimento:
— Ora põe-te com aquelas. Talvez ainda lhe tenhas medo. Olha que já se não mexe… —concluiu impelindo o cadáver com um pontapé.
E, logo, curvando-se sobre o corpo ainda quente, desaflvelou-lhe o cinto que suspendeu no ar, tilintando escarnecedoramente com o dinheiro, e rematou numa voz de contentamento miserável:
— Ouve-los? Cà cantam?! Fazem um certo arranjo.
O sangue ensopava a terra, jorrando em borbotões ruidosos pela boca do cadáver e pela ferida! O Rio Tinto, tendo guardado o roubo, observou com modo mais familiar, pondo a mão no ombro do companheiro, que permanecia na mesma aparente insensibilidade:
—Agora… pernas para que vos queremos. Toca a andar, que pode vir por ai algum patrão!…
Retrocederam pelo mesmo caminho, primeiro num passo rápido, depois a fugir, o Fanfarra atrás do Rio Tinto. Tomaram à esquerda, por um atalho pouco frequentado, que os devia levar, através de uns montes… a outra estrada… O Fanfarra, quando já estava mais seguro de si, parou subitamente, para considerar:
—Olha lá… Ficaria ele bem morto?!
O Rio Tinto certificou-lho do seguinte modo:
— Deus te dê mais vida do que ele tem!
Mas o Fanfarra, visivelmente preocupado com esta ideia, como estavam muito perto disse:
— Home… ainda é escuro… Voltemos a espreitar se ele se mexe!
E voltaram num passo rápido, melhor seguros de si… com a alma mais desanuviada e perversa. Ficaram a pequena distancia, de traz do muro, escutando… O silencio prolongava-se preguiçosamente na profundidade do vale. Somente o pingar monótono da fonte próxima perturbava este alvorecer indeciso, que os pássaros já principiavam a alegrar. Os assassinos, para se certificarem positivamente da morte do Fogueira, e como a escuridade ainda os protegia, saíram do lugar onde se tinham prudentemente escondido e aproximaram-se do cadáver, com certa ousadia é confiança. O corpo continuava a jazer exânime, de bruços sobre a terra! Não tinha o menor sinal de vida — nem sequer perturbava o silencio da noite, com a respiração ténue do moribundo! O Rio Tinto, empurrando outra vez o cadáver despresivelmente com o pé, pronunciou com um sorriso cínico:
—Estás bem morto I Pagaste-las todas. Já não comes mais broa.
O Fanfarra, que era menos animoso, observou-lhe, Com certo modo urgente:
— Home, deixa-o lá, coitado! Fujamos nós, que já se vai vendo!… Pode vir por ahi algum demónio…
O Rio Tinto concluiu com uma entoação trocista:
— Aposto que tens pena dele!… Ou é medo?!…
Não tenhas medo; nem ele, nem os que podem vir te prendem. Se algum pimpão ai aparecesse agora, fazia-se-lhe o mesmo e eram dois que ficavam estendidos.
Depois afastaram-se do cadáver e do caminho que tinham trazido de Viana, por atalhos seus conhecidos. Dali a poucos minutos, transpunham o cabeço sobranceiro à estrada. O Rio Tinto concluiu com serenidade:
— Agora é que é bom dar á perna, que ela vai-se mostrando…
Referiam-se à manhã que rompia, com uma claridade roxa. Era o alvorecer de um formoso dia de sol. As caminhadas dos montes circunvizinhos ainda se esfumavam indecisamente no azul; porém, o tremulusir das estrelas que fora, durante a noite, vivo e inconstante como o dos brilhantes nos bailes da opulência mundana, principiava a extinguir-se. O ar sadio e oxigenado dos campos, dava ao corpo dos madrugadores a sensação macia de uma ligeira humidade refrigerante. Dos pinheirais e das matas de carvalhos, já saiam os galos ralhadores, com o seu voou largo, anunciando, por cima das penedias, o dia que chegava. Os braços enfolhados das árvores nascidas nas eminências, recortavam-se no céu, tenuemente anilado, manchando-lhe a pureza. A modo que o dia se ia iluminando melhor, as árvores e as massas de penedos destacavam-se, com mais precisão. Da cor roxa primitiva, o céu, foi insensivelmente passando para a cor de rosa, depois para o azul plúmbeo, por fim colorindo-se todo por igual, quando as estrelas já se não percebiam, adquiriu o verdadeiro tom de azul ferrete, uma cor húmida e enérgica, própria das manhãs de primavera no clima do Minho. O nevoeiro ténue, como um gaze lançado sobre os montes e os campos, foi se pouco a pouco condensando no fundo do vale. A vida laboriosa dos trabalhadores ia manifestar-se nos caminhos e nas encostas. Seria um dia alegre como todos os dias, — os milhos continuariam a crescer, e as poucas cearas de centeio pintar-se-iam com o amarelo da ganga… Porém, neste pequeno largo plantado de velhos carvalhos anosos e onde uma pobre veia de agua pingava continuadamente, estava disposta uma surpresa desagradável, para o primeiro madrugador da aldeia. Era o cadáver de um rapaz de vinte e tantos anos, assassinado com uma facada, que lhe entrara no coração! O seu corpo estava de braços, no supremo abandono da morte! O sangue saído da ferida, molhava a terra e manchava-lhe a cara. E, a vivificante luz da manhã, o orvalho que refrigera, as cores da paisagem que inebriam pela complexidade de tons… essa força omnipotente que vem da natureza, pairava sobre o morto, com um cepticismo irónico e dominador!…
“Antonio Figueira” – Teixeira de Queiroz 1882
[youtube http://www.youtube.com/watch?v=xTVqLNLRty8?feature=oembed&w=500&h=374]
Demonstração em França, Paris Bercy 1988
Núpcias ao relento
Mais perto de mim (tão perto que estendo a mão e toco a sua lembrança carnal, a cara seca e a barba crescida, os olhos magros que em mim se repetiram) aquele avô guardador de porcos, de cujos pais nada se sabia, posto na roda da Misericórdia, homem toda a vida secreto, de mínimas falas, também delgado e alto como uma vara. Este homem teve contra si o rancor de toda uma aldeia, porque viera de fora, porque era filho das ervas, e, não obstante, dele se enamora minha avó materna, a rapariga mais bela do tempo. Por isso meu avó teve de passar a sua noite de núpcias sentado à porta da casa, ao relento, de pau ferrado sobre os joelhos, à espera dos rivais ciosos que tinham jurado apedrejar-lhe o telhado. Ninguém apareceu, afinal, e a lua viajou toda a noite pelo céu, enquanto minha avó, de olhos abertos, aguardava o seu marido. E foi já de madrugada clara que ambos se abraçaram um ao outro.
“A bagagem do viajante” – José Saramago (1973)
Ilustrações de “O Malhadinhas” de Aquilino Ribeiro
Hoje, 25 de maio, dois dias antes do exato cinquentenário da morte do meu Aquilino, ficaria mal se não deixasse aqui um livro dele. Mas deixo um livro que ele nunca escreveu como livro, mas que se tornou… num dos livros mais famosos dele.
O Malhadinhas começou por ser um conto, integrado no volume Estrada de Santiago, que viu a luz do dia em 1922. Muitos anos depois, em 1958, volta a aparecer num outro volume que tem dois títulos, de outras tantas novelas: A Mina de Diamantes e O Malhadinhas. Só mais tarde, devido ao enorme sucesso da obra, surge com o nome a ocupar a fachada do livro.
O Malhadinhas é uma aventura da vida. O homem existiu, viveu e a história foi contada ao Aquilino por aquele meu bisavô que já apareceu aqui por várias vezes. Deixou descendentes, um dos quais (a neta, salvo erro) foi a enterrar em Vila Nova de Paiva (o ajudengado nome que deram a Barrelas) há poucos meses.
A história do almocreve é contada na primeira pessoa, coisa que ao autor não deve ter custado muito. António Malhadas, o protagonista do longo monólogo que é a atribulada história da sua vida e que percorre um mundo que vai de Aveiro, onde compra sal, a Barrelas, onde o vende, tendo os seus divertimentos em cada porto, que é como quem diz em cada local de pernoita, começa por ser real e passa a ficcionado, tendo como resultado uma mistura onde se encontra também o autor. Não é sempre assim?
Homem capaz de juras com quantos dentes tem; e de mentiras que dizia com a aflição de um credo na boca, é de boa cepa, mas puxado ao exagero, de exaltações rápidas, perdões imediatos, sonhos grandes, pequenos feitos e coração puro. Mais do que isso, exímio no jogo do pau, consegue arrancar todos os botões do colete do adversário com uma pequena navalha enquanto com ele combatia. Ao fim de um ror de tempo a manejar o varapau, quando o brutamontes lhe propõe o empate, logo Malhadinhas lhe recomenda que procure pelas abotoaduras, das quais nem uma tinha, provando que o podia ter ferido e morto tantas vezes quantas as casas do colete.
Há quem diga que Aquilino é difícil de ler. Qual quê! Difícil é deixar de o ler, quando se entra a sério na obra. Olhem lá como Malhadinhas remata uma parte da história em que nos conta os amores antigos, antes de ter sacado, por maus modos e condenáveis métodos, a prima que lhe havia de dar mais uma dúzia de filhos, depois de com ela ter casado à pressa face a um padre temeroso. Pois o Malhadinhas conta-nos as aventuras de saias e remata assim: “Ricos tempos em que era capaz de tais Áfricas, ricos tempos”. E as Áfricas, como sabe o Manuel Fonseca melhor do que vocês, e eu melhor do que o Manuel Fonseca, são a aventura, a descoberta, a liberdade, os horizontes largos tudo na mesma palavra, que assim se faz poesia. Mas só quem sabe.
Vai o tempo, fica a saudade, o Malhadinhas reforma-se do jogo do pau a insistente pedido da sua querida mulher, Brízida. E ele, que é assim descrito “Danado aquele Malhadinhas de Barrelas, homem sobre o meanho, reles de figura, voz tão untuosa e tal ar de sisudez que nem o próprio Demo o julgaria capaz de, por um nonada, crivar à naifa o abdómen dum cristão” acede à mulher e prima, por quem tanto lutou e tanto penou. Pode morrer na paz de Deus, sem mais ter de andar a monte, a fugir.
O amor é que vence tudo, já dizem os entendidos e quem sou eu para os desmentir. Assim é nesta história também. E se acaso convenci duas pessoas a correrem à estante ou à livraria para ler O Malhadinhas, já cumpri com a minha obrigação.
Deus os guarde e bem hajam.
Henrique Monteiro, 25 de Maio de 2013
Desarme
Serão oito horas da noite. O céo está recamado de estrellas, mas os corpos não projectam sombras, porque o luar só apparece ás nove horas. O sitio incute respeito: é o monte da via-sacra. Se fosse de dia ou o luar brilhasse, poder-se-hiam contar as cruzes que, a partir da capella, erecta no cimo do outeiro, se erguem pelo monte abaixo, numa distancia de vinte passos de umas ás outras.
Numa pequena elevação, sobranceira ao caminho, a cerca de trinta passos do primeiro cruzeiro da via-sacra, guiada a vista pelo brilho do lume de um cigarro, acabava-se por distinguir o vulto de um homem, assentado, com o pau traçado sobre os joelhos. Era o mestre carpinteiro, que esperava alli o visinho, para lhe provar a justiça da sua causa.
Quem lhe podesse ler no cérebro acharia isto: — Muito mal… não… Quinze dias de cama e nada mais… Há-de levar a sua dose, para não tornar a ter o atrevimento de levantar uma cadeira para mim!
E tão certo estava de si, que continuava philosophicamente a fumar o cigarro, esperando o lavrador com a pachorra, com que um pescador de profissão espera horas até que uma truta se lembre de vir brincar com o anzol.
Por fim lá lhe pareceu que ouvia ruido de passos, e ergueu-se. Não se enganara: era o lavrador. Subia este a ladeira apressadamente, estimulado pela lembrança do susto com que a mulher o estava esperando, quando o carpinteiro, de um salto, se achou defronte delle. O lavrador reconheceu-o immediatamente, mas não se deu por achado, e perguntou com voz cuja affectada segurança trahia o sobresalto interior:
— Quem temos por aqui ? O outro, rindo sarcasticamente, respondeu :
—Alguém que vem ver se você e homem para outro!
— E’ vocemecè, sr. José? — redarguiu o lavrador, buscando ganhar tempo para achar sahida áquelle aperto.
— Um seu criado, para o servir com umas azas de pau!… Pôde mandar dizer isto ao seu doutor, a vèr o que elle de la responde! — proseguiu o carpinteiro.
—Elle que ha de dizer? — retorquiu o lavrador, tentando levai o pelo brio.
—Ha-de dizer que nunca pensou que o sr. José viesse esperar um homem que nunca lhe fez mal, e que nem sequer traz um pau como esse para se defender.
— Pois dirá… dirá, sim senhor, mas… enganou-se! … Não traz pau ?… Faz mal, se bem que, nessas mãos de pouco valia!… Mas leva rumor e acabemos com isto, que eu não vim ca para conversar!
E, fincando um pé um pouco mais atraz, ergueu o pau. O lavrador comprehendeu que não havia compaixão a esperar, e, confiando com razão no vigor dos próprios músculos, deu um salto para deante, ao tempo que o adversário erguia o terrível marmelleiro, e estreitou-lhe o corpo com os braços. O carpinteiro, vendo-se abraçado, deixou cahir o pau, já agora inútil, e arcou com o vivinho, murmurando apenas por entre os dentes cerrados :
—Ah! cão, que me embaçaste!
Começou então uma lucta horrivel entre aquelles dois homens, ambos ainda jovens, ambos vigorosos. Depois de alguns minutos de esforços inauditos, para ver qual delles subjugaria o outro, o pé do carpinteiro encontrou uma velha raiz de árvore, que o fez cahir de costas, arrastando na queda o seu contrario. Este, aproveitando a vantagem, desprendeu um dos braços e apertou vigorosamente o pescoço do inimigo, que espumava de furor, sem exahalar um queixume. Não tardou, porém, que uma ideia horrível viesse paralysar o estorço do lavrador. Pareceu-lhe que o vencido tentava metter a mão no bolso, viu-se esfaqueado, passou-lhe deante dos olhos a imagem da mulher e a orphandade dos filhos, ergueu-se e fugiu.
“Contos” Pedro Ivo (1874)
“Sr. Pedro Augusto da Silva, antigo professor de jogo do pau”
“Ilustração Portuguesa” 11 de Setembro de 1905 – p711