Portugal no tempo em que o jogo do pau era popular

Comparação do contexto da violência em Timor e Portugal do século XIX e inícios do século XX.

Artigo completo em:
http://jpesperanca.blogspot.pt/2006/11/blogosfera-conspiraes-e-artes-marciais.html

Em Portugal no tempo em que o jogo do pau era popular como as artes marciais aqui agora

Como sempre que se fala em violência em Timor aparecem uns quantos malais iluminados a sentir-se superiores por virem de países onde “nunca há porrada e toda a gente vive numa harmonia social perfeita” (antes fosse!), é bom lembrar pelo menos como eram as coisas há uns tempos nessas terras. Na Austrália havia caça organizada ao aborígene. Em Portugal era assim há umas décadas:

“Podemos dizer o mesmo – mas com mais certeza – das manifestações de violência que, por volta dos anos 20 e 30, acompanhavam geralmente as romarias e, mais concretamente, delas faziam parte ritual.

Não nos referimos só às disputas entre jovens que podem ter origem em rivalidades amorosas, sobretudo quando os rivais pertencem a grupos territoriais diferentes (717), nem às frequentes brigas provocadas pelo vinho (718). Eram outrora comuns e hoje não são raras (719). Referimo-nos, sim, a verdadeiras guerras entre aldeias, que explodiam, quase sistematicamente, no decurso das romarias e suficientemente recentes para que os velhos se lembrem de nelas terem participado e os mais jovens de a elas terem assistido. Se os velhos que entrevistámos são pouco loquazes relativamente aos aspectos sexuais da festa no tempo da sua juventude, os seus testemunhos são, pelo contrário, constantes e explícitos e as emoções ainda bastante vivas no que diz respeito a estas batalhas, permitindo-nos assim considerá-las como parte integrante da romaria. O pároco de Baçal relata fielmente alguns exemplos do fim do século XIX e princípios do século XX: alguns duraram um dia e uma noite, outros saldaram-se por mortos e dezenas de feridos (720). O pároco de Foz Côa mostra a inserção ritual e o desenrolar esperado e estereotipado destas batalhas na romaria da sua paróquia, até uma época mais recente. A naturalidade com que refere a continuação jovial do arraial, imediatamente após a separação dos adversários pela polícia e o transporte dos feridos (ou eventualmente dos mortos), mostra bem o carácter inelutável e sistemático desta fase da peregrinação (721). De alguma forma também este sangue fazia parte da festa.

(…)

As descrições detalhadas que recolhemos directamente dos actores de outrora centram-se na rivalidade entre aldeias (722). Antigas discórdias por vezes não resolvidas: «Discutiremos isso na romaria», velhos ressentimentos herdados de outra geração e que determinam uma agressividade latente, solidariedade entre os jovens «que começaram», ou então, muito simplesmente, recusa de aceitar uma humilhação ou uma injúria imediata… todos estes motivos podem conjugar-se – e ligar-se em torno de uma fatalidade própria da romaria – num fundo de hostilidade e de alianças tradicionais de que já não se sabe a origem. (…) Uma oração de joelhos, depois, agitando ameaçadoramente os cajados, um grito: «Viva Tinalhas!» (…) E era então que frequentemente estalava a briga. Entre homens. A pau e pedra. (…) Extremavam-se os campos, sempre os mesmos: Salgueiros e Póvoa de um lado, Juncal, Freixial e Tinalhas do outro (724).

(…)

Os antigos combatentes estão de acordo acerca dos factores desta evolução que puseram termo às guerras de aldeias: a escola, a Guarda Nacional [Republicana], os sermões do pároco «quando ele é bom…». “ in Pierre Sanchis – Arraial: Festa de um Povo – as romarias portuguesas. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1992, 2ªed, p. 175-177

Ou ainda:

Ernesto Veiga de Oliveira – Festividades Cíclicas em Portugal. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1984, pp.323-324 (Citado em O jogo-do-pau como representação de estatuto e hierarquia nas sociedades tradicionais): “E era o «varrer» da feira ou do terreiro, refregas épicas, verdadeiras lutas campais, de paus que cruzavam no ar, no furor das pancadas, num jogo largo de feira ou «varrimento» (…), entre nuvens de pó, no meio da gritaria das mulheres que fugiam em todas as direcções”.

O assunto também foi tratado por autores de ficção que retratavam nos seus romances a sociedade daquele tempo. Transcrevem-se de seguida alguns excertos de Terras do Demo [ Aquilino RIBEIRO – Terras do Demo. Lisboa, Círculo de Leitores, 1983] :

“(…) -Eh, rapaziada da Seitosa – disse ele -, então que febre vos fazem as vacas?

-Ainda aí apareces, filho de sete curtas!? – increpou o Zé Narciso. – Vais pagar o descaramento…

E à mão tente despediu-lhe o lodo à nuca. O Brás aparou a pancada no ombro e respondeu-lhe com uma chuçada valente do sombreiro à arca do peito.

O outro pulou e, trás, trás, só deixou de bater pela cabeça, pelos braços, pelo corpo todo, quando o viu estrumado por terra, a roncar.

O Espadagão vinha com uma enxada para lhe britar a cabeça, mas o Cláudio vendeiro deitou-lhe o gadanho e o golpe foi quebrar-se nas costelas:

– Conho, em homem no chão não se dá! (…) [pág. 134]

Passavam maltas, de varapau a estreloiçar contra varapau, varrendo nas arrecuas do batuque o terreiro coalhado de gentiaga: Viva Lamosa! (…) [pág. 136]

Entre eles nem ficava chão para cair um alfinete. E por entre estes e as vareiras, as maltas e ranchos cavalavam. Lá rompia Granjal de lodo no ar, tau-tau, viva a rusga! (…)

Aí disparava um cavaleiro, todo farófia, chapéu de aba larga, pau de choupa entalado debaixo da perna:

– Olá, gentes, abram passagem!

Bem arreada besta, crinas rentes, franjas na retranca, rifadora por de mais. O ar dele era rebentio, com a pinta de rico, e o poviléu apartava-se à banda. Mas lá desembocava outra malta:

– Viva Tabosa!

– Viva!

– Viva até que morra!

E arremetia por ali dentro, aos safanões, ó cetrás, em borborinhos de poeira, num zafarrancho de mil demónios. (…) [pág. 241]

– Foge! Foge! – exclamou a Zabana para Glorinhas diante dum roldão de caceteiros em enovelada correria.

Eram as maltas do Granjal e da Vila da Ponte que se acometiam, naquela sua inveterada rixa de povos fronteiriços e forçudos. Emborcando tarimbas do negócio e trilhando os dorminhões, acossado pelo estreloiçar dos paus, o poviléu varreu às bandas.

Glorinhas e a Zabana meteram para a porta do santuário, em que uma onda medrosa se atropelava. A espaldas delas, retiniam pragas, gemidos e gritos de aqui-d’el-rei. Mas acudia a tropa e os desordeiros tresmalhavam a pés de cavalo. Curioso, o povo refluía sobre o lugar da refrega, que durara o tempo dum credo. Escabujava no chão homem ferido, se não morto, e vozes de mulher gemiam, testemunhando a justiça do céu e da terra. (…) [pág. 257]

Se nas primeiras décadas do séc. XX houvesse malucos azuis e um blog “Portugal-Online” ser-nos-ia naturalmente aí explicado que a cacetada da velha que havia nas aldeias portuguesas existia precisamente por causa de uma conspiração organizada pelos espanhóis, pelo Presidente Bernardino Machado, pelos monárquicos e pela Nossa Senhora de Fátima.

O bolo refolhado

“Era uma mulher casada com um homem muito ruim, que lhe batia todos os dias por qualquer coisa.

Uma vez, ao levantar-se para o trabalho, de madrugada, disse ele para a mulher:
– À noite, quando vier, quero para a ceia bolo refolhado. Olha lá, toma cuidado no que digo.

A mulher não sabia o que era bolo refolhado, e foi ter com uma vizinha para ver se ela lhe ensinava. A vizinha, que tinha muita pena da vida que ela levava, disse:
– Deixe estar, que eu cá lhe arranjo isso. Com certeza que o seu homem se enganou, há-de ser bolo «folhado». E levou-lhe à tardinha o bolo.

Quando veio o homem do trabalho, pediu a ceia, e, como não achou o bolo refolhado, berrou, ralhou, deu muitas pancadas na mulher.
Ao outro dia a mesma coisa. A mulher, coitada, foi ter com a vizinha, e ela disse-lhe:
– Arranje-lhe vossemecê uma galinha guisada, que pode ser isso o que ele talvez queira.

Voltou o homem à noite, e mais pancadaria na mulher, por não lhe ter feito para a ceia o bolo refolhado, como mandara. Ao ir para o trabalho, outra vez a mesma recomendação. A desgraçada da mulher não sabia como acabar aquele fadário, e foi ter com a vizinha a chorar.
– Deixe estar, vizinha, tudo se arranja! Venha cá ter comigo à tardinha, vestida com as calças e o jaquetão do seu homem.

A pobre mulher foi. Assim que chegou a casa da vizinha, também a achou vestida com as calças e o casaco do marido dela; e partiram ambas com os seus varapaus para o sítio por onde o homem ruim havia de vir do trabalho.

Puseram-se cada uma de um e outro lado do caminho. Quando o homem vinha a passar, diz uma:
– Bate-lhe, São Pedro!
– Porquê, São Paulo?
– Porque pede à mulher bolo refolhado.

Moeram ao som desta cantiga o homem com pancadas e depois de bem moído fugiram. O homem lá se arrastou para casa como pôde, e assim que viu a mulher pediu-lhe perdão de tê-la maltratado tanto tempo, e contou como lhe tinha aparecido no caminho São Pedro e São Paulo, que o desancaram em castigo de pedir o bolo refolhado, que era uma coisa que ele não sabia o que era.”

Teófilo Braga

Um exército? Mas ele não precisa de um exército além do Varapau, do burro e do cão. O varapau varre um feira, tão eficazmente como um canhão krupp.

“As alegres canções do norte” Alberto Pimentel (1905)

Um duelo a valer.

(…)Entrementes, o cavalo, montado pelo guarda do Vitorino  recuando, para não pisar um homem, derrubou a Eufrásia.

A Eufrásia, irada; esbravejou :

— Arre, que é bruto.

Um outro, também criado, pimpão, afamado jogador de pau, varredor de feira, encostado ao cajado, retorquiu, friamente zombeteiro — Não enxovalhes a rainha.

Da multidão, que ria fazendo coro à moça, gritou terceiro:

— Olha que ela tem o pai alcaide.

— E o marido deputado — mal disse o primeiro, porque as silabas finais extinguiram-se, ficaram abafadas debaixo da lençada de tremoços, que a Eufrásia chapou na boca do atrevido.

Uma gargalhada geral açulou o rapaz, obrigou-o a levantar o varapau, que encontrou no ar o cajado dum cantoneiro municipal, empurrado pelo Xavier para defender a Eufrásia.

Os paus pesados, ferrados, cruzaram-se e logo se separaram, defendendo as cabeças, agredindo em pontoadas, descarregando-se em golpes, sempre aparados pelos dois, que saltavam para os lados, recuavam, avançavam, abrindo praça no meio do povo.

Suavam ás bagadas, sem chapéu, sem jaleca, caída na refrega, a camisa aberta, mostrando, a cobrir o peito, como coiraça, a cabeladura negra, hirsuta. Retesavam os músculos dos braços, acuavam para se defender, pinchavam para se alcançar. Calara-se a música e de todos os lados afluía gente, ávida de curiosidade, atropelando-se, pisando os mais fracos, formando grossa corrente, numa impetuosidade de fereza animal. Era uma revolução — todos se levantavam, todos corriam por ver correr, todos se empurravam porque se sentiam impelidos para o torvelinho da poeirada, para a mole da gente, para o inferno da vozearia. Por entre as lamurias, aflitivas, das mulheres, o choro das crianças, os aplausos, calorosos dos homens, ouvia-se a pancada, seca, rija, dos cacetes a medirem se, a chocarem-se.

O cantoneiro, perdendo terreno, foi de costas a duas mesas de capilé. Tiniam, feitos em pedaços, os vidros dos copos e das garrafas; chocalhavam, a rebolar nas pedras, as latas do açucar; tilintavam, a cair da gaveta desconjuntada, as moedas de cobre; e as vendedeiras, em choroso alarido, gritavam á del-rei.

O cantoneiro estacou sem terreno, cobriu-se com o pau, limitou-se á defesa. O outro atirou-lhe, e o cantoneiro levantou o cacete, aparando a pancada no ar, mas com o choque, foram-se-lhe a baixo os braços, derreados. E assim, descoberto, já não pôde livrar-se doutro golpe, certeiro, no meio da cabeça, aberta em brecha, a repuxar sangue.

Com o ferimento saiu da multidão um grito de aplauso, em que se expandia naturalmente o entusiasmo pela luta, a aclamaçâo da vitoria  o interesse pelo jogo; em que se mediam dois dos melhores cacetes dos arredores, com partidários divididos, que, mais civilizados, teriam feito rendosas apostas pelo vencedor. Esse grito ressoou como um triunfo:— Eh! Zé!…

O Zé não se demorou em agradecimentos, voltou costas, abriu rua fazendo sarilho com o pau, saltou para dentro duma insua, e perdeu-se nas milharadas.

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Francisco Eduardo Solano de Abreu “Um anjo sem azas” (1907)

A tradição do Jogo do pau representada por mestre Nuno Russo no novo videoclip dos Deolinda.
http://www.youtube.com/watch?v=pjACOG_loM0

“Os Deolinda apresentaram esta segunda-feira (Março2013) o videoclip “Seja Agora”, o primeiro single do novo álbum “Mundo Pequenino”, lançado no mesmo dia.

O videoclip, realizado pela QUIOTO e produzido por Joana Faria é, antes de mais, uma homenagem à dança, presente em todo o videoclip. Piny foi o nome escolhido para dar forma, ou formas, ao que originaria um espetáculo de movimento, no qual se cria uma fusão de estilos que representam diferentes culturas e países, mas onde, apesar de tudo, é possível distinguir os vários estilos de dança que se fundem num só. Para Piny este foi o maior desafio, fazer com que todos os estilos resultassem num único movimento.

No Making Of, disponibilizado pela Antena 3, podemos ver como cada bailarino procura o seu movimento no seu próprio estilo: Piny no Tribal Fusion Belly Dance, Yolanda no Flamenco Árabe, Lúcia Afonso na Capoeira, Leo Ramos no Hip Hop, André Cabral no Contemporâneo, Rui Rosa no Vogue, Raquel Correia no Hula e para o Jogo do Pau, Nuno Russo.“ – Publicado por: In Dancing Shoes – Tudo Sobre Dança em Portugal!

[youtube http://www.youtube.com/watch?v=HNEOwdCRdmM?feature=oembed&w=500&h=281]

http://www.youtube.com/watch?v=HNEOwdCRdmM
Palestra de Pedro Tânger na Quinta da Regaleira em 2012, sobre o jogo do pau português, a sua experiência de competição com bastão contra outras artes marciais e o contexto da esgrima lusitana nas artes marciais e na cultura portuguesa, com introdução de mestre Nuno Russo.

Uma mulher a sério!

No alpendre do carpinteiro reunia-se o povo do lugar onde as novas vinham a lume, frescas, em jeito de escárnio e maldizer. cónego estava sempre no eixo da discussão e agora os circunstantes debruçavam-se sobre a eventual prole ou filharada de D. Celestino, lá para os lados da Serra. Não se sabia ao certo quem eram as beatas apanhadas pela rede do pároco que geria mais de uma freguesia do concelho. Desconheciam-se, por ora, casos de pedofilia, coisa tratada com pau de marmeleiro, deixando o energúmeno com o crânio desfeito, seguramente.

– Seguramente que ele não se mete com a tia Belarmina, porque, se o fizer, fica com as costelas partidas – diz o Aristides.

– Como assim? – indaga o Fortunato.

– Ora, não sabes que ela leva, normalmente, o namorado, noite adentro, à própria casa, em Cavião? – pergunta o Aristides. No regresso, sete malandros atravessaram-se-lhe no caminho e ela, com o pau de marmeleiro, que andava sempre consigo, atirou-os por terra!

– Essa é que é uma mulher a sério – interrompe o Cego da Catrina! É a única que não tem medo do tardo e vai ao moinho, sozinha, a qualquer hora da noite.

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“A vida é um ensaio” – Adriano Correia de Pinto (2010) 

Bravo Jardineiro contra Caceteiros

Cena de romance histórico sobre as guerras liberais portuguesas, em que um jardineiro armado de varapau, para proteger um jovem, bate-se com um grupo de caceteiros enviados pelo morgado.

“Distinguiram por fim ao longe uma figurinha de militar.

Era João, vestido de guarda nacional, farda curta de saragoça portuguesa, com botões brancos, gola azul claro, laço azul e branco no chapéu redondo.

Do ponto onde estava, o mirante sobranceiro ao pátio, em face ao alpendre da escada, ia vê-lo entrar e, talvez como antigamente, ele viesse falar-lhe, arrependido da imprudência.

Pensando assim, seguia-o Maria num olhar de ansiedade, encobrindo-se com as trepadeiras do caniçado, para não lhe dar a confiança de mostrar que o esperava.

Vinha já perto, quando notaram dentro movimento desusado.

Corria o quinteiro, e meia dúzia de cavadores de enxada, batendo os pés descalços na terra endurecida pelo calor, varapaus ao ombro, falando alto.

Desacorrentara o criado dois grandes cães de fila, amarelos, rabo cortado, focinho negro, faces ameaçadoras, que de noite rondavam ganindo e uivando.

Ao chegarem ao pátio, ocultaram-se na cocheira homens e cães, e o quinteiro foi esconder-se por traz do postigo, como se quisesse fecha-lo mal entrasse João.

– Que é isto, José? – perguntou Maria, suspeitando uma violência.

– Ordens do senhor morgado – respondeu ele, rindo alvarmente – não quero saber!

Mas Josefa da Esperança, muito nervosa, nem lhe dera tempo à resposta, e ao ver João em frente do mirante, avisou-o:

– Não entre, que lhe querem bater!

Maria, correndo ao muro, bradou-lhe também:

– Foge, foge!

Numa grande excitação, gritava a prima:

– Aqui d’el-rei! Aqui d’el-rei!

Ele recuara ao ouvir os gritos e, vendo aparecer ao postigo a cabeça lanzuda, compreendeu que lhe faziam uma espera.

Desembainhou a baioneta, aprumou-se garboso, e avançou muito pálido para a porta, que de dentro fecharam com estrondo.

Sentiu então Maria que o amava, vendo-o encarnar o tipo glorioso, cavalheiresco, da imaginação das raparigas, geralmente fixado nos que têm por ferramenta a espada e a lança do cavaleiro andante de outras eras.

Dirigia-se-lhe com o coração nas mãos, como ele no pomar, num rubor de sangue, lavada em lágrimas, pondo as mãos:

– João, João, não te percas por minha causa!

Sem a atender, batia exasperado no portão com o punho da baioneta, bradando querer falar ao senhor Martinho Vasques.

Ouvindo ladrar ameaçadores os cães de guarda, virou-se Maria para o pátio.

Aos gritos de socorro de D. Josefa, correra de dentro o jardineiro com um grosso varapau cruzado como a espingarda, a ponta á altura dos olhos, fortemente cingido ao corpo.

– Querem bater no Joãozinho! – explicou-lhe ao vê-lo.

Correu o veterano ao postigo, aferrolhou-o, e berrou aos caceteiros que se fossem embora.

– Quem manda aqui é o fidalgo! – respingou o quinteiro, fazendo-se forte à frente do bando.

Mas os camponeses, receando as fúrias do velho, mantinham-se indiferentes, apoiados aos bordões, num riso estúpido.

– Deixe-me abrir a porta! – insistia o José da Quinta, querendo deitar os cães, segundo as ordens do amo.

– Primeiro te racho de meio a meio! -ameaçou mestre Jacinto, encostando-se ao postigo.

– A vem-te com estes! – casquinou o quinteiro, abrindo com um pontapé a porta da estrebaria.

Saíram ladrando excitados _Marujo_ e _Sultão_, mas conhecendo o jardineiro, não lhe pegaram.

– És pior que os cães, que os animais não têm entendimento e não fazem mal só porque os mandam!

E o velho rilhando o dente, na fúria que o tornava terrível, avançou, crendo-se em plena batalha, e fez recuar o capataz e o rancho, levando-os de roldão até ao fundo do pátio.

Ai, metido em brios, tentou defender-se o mandatário do morgado, mas caiu, lavado em sangue, com uma cacetada na cabeça.”

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“Os Bravos do Mindello” – Faustino da Fonseca (1906)