A morgadinha de Val-d’Amores

morgadinha
SCENA VII – Frederico,  JOÃO LOPES, e cabos

Joao Lopes – Olhe, se foge, que o snr. vae levar pancada de crear bicho. Estão-se a preparar os valentões.

(Frederico apita rijo. Apparecem de differentes sahidas 6 cabos de policia que escutam Frederico, em quanto se repete a cantilena. Finda a cantilena, ouve-se fóra o rumor da desordem, e o estalido dos varapáos. As cantadeiras fogem alvoraçadas a dar gritos.)

 

SCENA VIII – Frederico, cabos, um desconhecido, e camponios

Frederico (com intimativa bellica) – Formem em linha. Carregar armas!

Um cabo – Estão carregadas.

Frederico – Vamos ser atacados pelos desordeiros. Á voz de fogo, atirem.

(Vê-se atravessar a scena por entre o povo um Desconhecido de chapéo derrubado, o rosto coberto por um lenço, de caraça, polainas e briche nas pernas e pés, com um grosso páo de choupa. Proximos de Frederico os valentões param, com os páos cruzados nas pernas, gingando em attitude ameaçadora. Frederico, não se desvia dos cabos. De repente, rompem de fóra uns poucos varrendo o campo a pauladas.) 

Frederico- Cabos de policia, sentido! Preparar armas!

(Sáe perto da bocca da scena o Desconhecido. Escosta-se ao páo observando os movimentos dos valentões, os quaes vem já avançando, já recuando, crescendo sobre Frederico.)

Frederico (aos cabos) – Aperrar armas!

(Uma paulada faz soltar a clavina das mãos d’um cabo. Os outros fogem. Frederico recúa, apitando rijamente. No maior aperto, o Desconhecido salta para a beira d’elle, descobre a choupa do páo, e arremette com os aggressores. Estes, forçados pela destreza, fogem,logo que o primeiro cáe d’uma paulada. A vozeria cresce no momento em que o palco está despejado. O Desconhecido trava do braço de Frederico, e o traz á bocca da scena.)

Frederico – Quem é o valente homem a quem devo a vida?! quem é?

Morgadinha (arrancando o lenço do rosto) – Sou eu! salvei-te, Frederico!

Frederico – Ó morgadinha de Val-d’Amores! Tu!.. oh! tu!.. Como és ideal e angelica! (Ajoelhando.)

FIM DO SEGUNDO ACTO.

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“A morgadinha de Val-d’Amores” – Camilo Castelo Branco (1871)

1 de Dezembro – A restauração e a esgrima em Portugal

A 1 de Dezembro celebra-se a Restauração da Independência de Portugal que, em 1640, pôs fim à dinastia espanhola neste país.

No contexto da esgrima na península Ibérica, desde 1587 que Don Jerónimo de Carranza, com a sua obra “Filosofía de las Armas”, conseguiu criar uma nova forma de praticar a esgrima, intitulada “La Verdadera Deztreza”, tratado que se impôs e fez esquecer tudo o que havia antes, considerando a esgrima do passado como “antiga” ou “vulgar”. Esta nova esgrima dedicava-se quase exclusivamente a espadas manejadas a uma mão, um processo que estava já a acontecer por toda a Europa.

No entanto, não lhe tirando o mérito, fez provavelmente esquecer um tipo de esgrima mais antiga, com armas a duas mãos e que tratava de situações diferentes do duelo um contra um.

Em 1651, Dom Diogo Gomes de Figueiredo, General de Artilharia português e mestre de esgrima, escreveu um manual de esgrima com espadas a duas mãos (o montante) que, calcula-se, tentava um pouco reviver essa esgrima mais antiga, olvidada pela obra e expansão da esgrima protelada pelo mestre espanhol. Dom Diogo Gomes de Figueiredo não só bem conhecia a Verdadera Destreza, pois também era mestre de esgrima, como também a antiga esgrima, com armas a duas mãos, e outras situações que tratava esta esgrima vulgar. E foi sobre essa esgrima já no seu tempo a cair na obscuridade, que decidiu tratar no seu manual.

As situações de combate a que se referiu são as de combate em inferioridade numérica. Como exemplo deixo aqui algumas situações referidas no manual de Dom Diogo:

“He esta regra para brigar com gente por detraz e por diante (…)”

“Serve esta regra para brigar em hua rua larga com gente por detras o por diante (…)”

“Serve esta regra para deter gente em hua rua e impeder que não passe de hua parte para a outra.(…)”

Estas são as situações tratadas também, e muito extensivamente, no jogo do pau português, no chamado jogo do norte, que retrata o combate em inferioridade numérica, estando geralmente cercado de adversários. E este é também o tema do primeiro manual verdadeiramente de jogo do pau de 1886.

Assim, Dom Diogo Gomes de Figueiredo, movido provavelmente pelo renascer de uma nação, reflecte uma quase perdida arte de combate. Este seu trabalho não chegou infelizmente a ser publicado, e a esgrima de espada evoluiu inevitavelmente para a que conhecemos hoje, mas as situações tratadas por este autor sobreviveram na esgrima do varapau sendo praticado até aos dias de hoje, uma prática quase esquecida em outros tipos de esgrima, seja europeia ou de outras partes do mundo.

Outros autores, mas muito poucos, trataram deste tipo de esgrima a duas mãos, contra vários adversários, sendo esta obra um elemento essencial entre não mais que duas ou três outras, que nos permite perceber que a prática actual do jogo do pau não foi uma invenção recente, dos últimos 2 séculos, sendo já uma prática comum muito antes de termos conhecimento do jogo do pau como é conhecido na literatura desde o século XIX.

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Memorial Da Prattica do Montante Que inclue dezaseis regras simples, e dezaseis compostas Dado em Alcantara Ao Serenissimo Principe Dom Theodozio q. Ds. G. de Pello Mestre de Campo Diogo Gomes de Figueyredo, seu Mestre Na ciencia das Armas Em 10 de Mayo de 1651

Cura portuguesa para negaças

A discussão em torno de mais garrafas de Antárctica prosseguia sobre capoeiras e capoeiragem lembrada pela rasteira que o mulatinho aplicara a indivíduo muito mais forte do que ele. O monitor contava as proezas que presenciara no Maranhão de onde provinha e por brincadeira censurava os rapazes quando duvidavam que o vendeiro por ser português não podia enfrentar um capoeira.

– Tem mondrongo que sabe o que é rasteira, rabo de arraia, cocada. Tem sim senhores. Na Bahia, onde eu me demorei antes de vir para cá – dizia o ginasta – eles de tanto viver com bamba aprendem quando moços a arte. Eles rapa um homem, dá um corta-capim tão bem como qualquer cabra de tiririca. Nem precisa ir tão longe, mesmo da festa da Penha no Rio de Janeiro vocês pode ver.

– Esses já são filhos do português, porque para ele a arma é o varapau que eles gira em torno deles como moinho. Agora como é que você quer que apareça o homem com vara grande na festa da Penha?

– Eles não vão passear com vara, mas eu vi como de repente eles pode aparecer saidos não se sabe de onde e varrer de vara em giro uma festança. Ninguém chega perto.

– Sendo assim, talvez…

– É mesmo – Interveio o sargento Evangelista –  me lembro no Rio do dono de um boteco da ladeira João Homem, que era taco na vara. Certa vez o Onofre da Balainha se implicou com ele e todos começaram a dizer “Óia português, toma tento com esse cabra, óia que ele é preverso! É melhor esperar a ronda!” Qual o quê, de nada adiantou. O português pegou a vara que estava atrás da porta, saiu do boteco e deu cabo dele. Não adiantou o cabra negacear, a vara assoviava, ia por toda parte e na terceira vez que o alcançou, ele já estava tonto. Isto porque o português estava farto de conhecer negaças sabia lidar com elas.

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“Três Sargentos” – Aldo Ney (1985)

José Maria da Rocha, antigo mestre de Terras de Bouro

O concelho de Terras de Bouro, situado em pleno coração do Parque Nacional da Peneda-Gerês e percorrido pelas bacias do Cávado e Homem, é riquíssimo em história, tradições e paisagens deslumbrantes.

José Maria da Rocha, mais conhecido pelo senhor Rocha foi um exímio jogador do pau. Este terrabourense nasceu em 19 de Março de 1929 no lugar do Assento na Freguesia de Cibões. Com apenas 9 anos de idade foi servir como moço de lavoura para a freguesia de Santa Isabel do Monte onde lhe pagavam um salário anual de 300$00. Com 13 anos vai trabalhar para a casa do Feixa, em Vilarinho da Furna, e vê o seu salário anual aumentado para o dobro. Em Vilarinho, as suas principais tarefas eram regar os campos de milho e guardar as cabras na serra. Aos 14 anos decidiu encontrar melhor sorte em Lisboa. Na capital, começou como ajudante de cozinha numa pastelaria de fabrico para revenda. Mais tarde foi trabalhar para a pastelaria Áurea, na rua do Ouro, e a seguir trabalhou na pastelaria Marques na Avenida Almeida Garrett. Foi com colegas seus da cozinha que aprendeu a assinar o seu nome porque na sua infância não havia escola.

Inicia a sua actividade de cozinheiro propriamente dita no Hotel Florida onde permanece até a ida para a tropa. Cumpre o serviço militar na Base Aérea nº1 de Sintra e volta ao Hotel Florida. Volvidos três anos, muda para o Hotel Espadarte em Sesimbra e mais tarde para o Hotel Turismo da Ericeira. Esta itinerância nunca se deveu ao facto de não gostar de trabalhar nestes locais ou de ser preguiçoso, mas à procura de melhor salário. Foi somente em 1951 que obteve os seus primeiros oito dias de férias. O senhor Rocha trabalhou como cozinheiro ainda noutros locais e chegou a viver a aventura da emigração em França durante cerca de sete anos.

Hoje, na reforma ajuda e apoia a sua esposa que devido a um glaucoma praticamente se encontra cega.

O senhor Rocha confidenciou à reportagem do “Geresão” que a reforma de França, com descontos apenas de sete anos, é bem maior do que a reforma portuguesa. “Após 38 anos de trabalho na indústria hoteleira, a pensão de França é mais do dobro que a pensão da hotelaria”.

Afirma com tristeza que “a freguesia de Cibões está envelhecida, as casas dos lavradores estão vazias, as alfaias agrícolas estão paradas e os campos ao abandono. Dantes era gente por todo o lado, agora é uma miséria.” No entanto, considera que há actualmente aspectos positivos “porque temos luz, telefone e estradas.” Insiste em comparar o passado com o presente: “Dantes era tudo cheio de gente. Agora, toda a gente foge. A lavoura não dá quase nada. Uma profissão que vai dando ainda é a de cozinheiro, mas tem que se fugir daqui.”

Foi em Santo António de Missões da Serra que o senhor Rocha aprendeu a jogar o pau com José Pelote e também com o João Quinteiro de Bergaço. Queixa-se da falta de reconhecimento. “Nunca foi feita uma homenagem a qualquer um dos jogadores de pau do nosso concelho e nunca nos deram a conhecer. O João Quinteiro foi para mim o maior jogador do nosso País.”

joserocha

Em Lisboa, na década de 50 o senhor Rocha inscreveu-se no Ateneu Comercial tendo recebido aulas do mestre Domingos Miguel e do contramestre António Antunes Caçador. Frequentou esta escola durante 30 anos. Fez demonstrações no Estádio da Luz, nas festas de Vila Franca de Xira no Pavilhão dos Desportos, e em muitos outros locais.

Actualmente ainda recebe inúmeros convites para fazer demonstrações, mas as pernas já não o ajudam.

O senhor Rocha fez questão de mostrar à reportagem do “Geresão” a sua infindável colecção de varas. São às dezenas. Há varas para todos os gostos. Umas são de lodo, outras de junco e outras de marmeleiro. Parte delas foram feitas pelas suas mãos. “A protecção de metal que as varas têm nos extremos são para não esgaçarem”, explicou o senhor Rocha.

No que concerne ao jogo do pau esclarece que “isto não é um jogo de pau, mas esgrima do pau nacional que já vem do tempo do rei D. Carlos (finais do século XIX e princípios do século XX).”

Foi há 26 anos atrás que criou, na vila de Terras de Bouro, a convite do Presidente da Câmara Municipal, José Araújo, a escola do jogo do pau que veio a funcionar regularmente durante oito anos. Esta escola terminou, apesar do número sempre elevado de alunos, devido ao problema de artroses que começaram a limitar a sua mobilidade. “Porque as voltas que o pau dá por cima no ar, as pernas têm que dar as mesmas voltas por baixo.” As pernas mataram-lhe outra das suas grandes paixões: a caça porque não lhe permitem longas caminhadas pelos montes de Cibões.

“Foram oito anos de professor”, recorda com saudade. Mobilizou muitos jovens terrabourenses para a prática do jogo do pau. No nosso concelho e noutros locais, o senhor Rocha e os seus pupilos fizeram inúmeras exibições. Recorda-se com carinho de todos os seus alunos e destaca o Luís da Souta e o Álvaro do Pereirinha que eram jovens muito empenhados e assíduos.

Jogou o pau com indivíduos de Espinho, Melgaço, Sesimbra e de outras localidades do nosso País e foram muitos os episódios caricatos. Uma vez jogou o pau com um indivíduo chamado Adelino Barroso na vila de Terras de Bouro. Foi num dia de feira, na “Leira do Sousa”, por debaixo do Escola Padre Martins Capela depois desse indivíduo o ter desafiado. O Adelino Barroso atirou-se muito impetuoso e o senhor Rocha foi desviando o seu corpo das varadas. Deixou-o entusiasmar-se e o resultado “foi ter rachado a cabeça ao Adelino Barroso com uma boa varada”.

Uma outra vez estava a jogar o pau com um indivíduo que lhe atirou uma varada, conseguiu desviar-se, mas o outro jogador cortou-lhe o cinto com a pancada.

Muitas vezes chegou a estar cercado por quatro ou cinco homens, mas defendeu-se sempre “porque as pernas ajudavam”.

O senhor Rocha aconselha a nossa juventude a valorizar o que é tradicional e aprender o jogo do pau. “O jogo do pau faz parte da nossa tradição e pode ser usado em legítima defesa. Mas, hoje, não há quem queira aprender a tocar cavaquinho, por exemplo, ou aprender outra coisa qualquer. O que é tradicional, infelizmente, vai morrendo aos poucos.”
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Publicado no jornal o “Geresão” em 20 de Janeiro de 2006.

“As cavalhadas e o jogo de pau no Velodromo de Lisboa”

“O prefessor Domingos Salreu jogando o pau, vestido de campino.”

Ilustração Portuguesa 2ª Série N 23 de 30 de Julho de 1906

Manufactura barata – Diario das Cortes da Nação

Sr. Sarmento – Os ilustres preopinantes tem informado o que há a respeito da província do Minho, eu direi o que sei a respeito da de Traz os Montes. Observei que as feiras nesta província são em demasiado número: em muitas delas as manufacturas, que se vendem por preço mais barato, são cabeças e braços quebrados, e muita bordoada.

“Diario das Cortes da Nação Portugueza” (1822)


EN:  In a discussion about the amount of rural markets/fairs in the north of Portugal, in the Diary of the Courts of Portugal, 1822, Mr. Sarmento complains about the many markets/fairs in the region of Trás-os-Montes also in the north of Portugal. He says that the most common goods and manufacture are broken heads and arms in the many staff brawls that happen there.

Feira dos 26

Conta-se  a história de um jogador de grande talento do Porto, chamado Carvalho, feirante de gado, que na Feira dos 26 em Angeja, perto de Aveiro, conseguiu aguentar-se sozinho contra um grupo que o atacava, até que tropeçou e caiu para o chão, e nessa altura o melhor jogador dos adversários saltou para o seu lado, pronto a defendê-lo, dizendo aos seus companheiros que quem pretendesse bater no valente caído tinha que lutar primeiro consigo.

Romaria Heróica

-JOSÉ MARIA GASPAR in Almanaque Bertrand, 1952

Depois da procissão, que passara num recolhimento impressionante, rompiam as danças, as rifas, os desafios e… arrulhavam os namoros cheios de pó e ilusões — estômago e coração a transbordar de vinho e amor.

Um cantador que aludiu a um namoro… Não se sabe! Talvez. Um miúdo que roubou um púcaro duma tenda. Correrias, fritos, empurrões, “sarrabulho”; e um valente de Presa garante que o ladrão é da Portela “que é terra de ladroeira”. O que foste tu dizer! Um da Portela, que ouvira, dá o tom com uma valente cacetada: Pá… á! E começava então verdadeiramente o arraial… Cruzavam-se cacetes da Presa com os varapaus da Portela. As mulheres insultavam-se fritando, empurravam-se, descompunham-se… enquanto a refrega masculina continuava acesa, movimentada, quase sem palavra, numa cadência trágica de cacetadas, vivas e um ou outro gemido prolongado dum corpo que se estende.

Que poético, meus senhores! Que lírico e bucólico panorama! Dava a impressão de que ficaria tudo raso. Desapareceram tendas, mutilaram-se coretos, evacuou-se o largo. Pelos caminhos convergiam lentamente os ranchos — cabeças atadas… e novas cantigas e novos ditos espirituosos e comentários… e o regresso a casa.

Cansados, exaustos poeirosos, amachucados, aproximam-se das suas casas. Donde vens?, perguntava-se. Venho da festa!, respondia-se. E divertiram-se? Eh! isso é que foi! Bordoada de criar bicho, cacetada a rodos… mas ninguém morreu. E o barbeiro da terra tinha ainda que fazer para muitos dias, a encanar ossos e a dar pontos artificiais.

Perdoem-me a franqueza da confissão: eu fui sempre um apaixonado pelas romarias de Portugal. Naturalmente porque as conheci noutros tempos. Aquilo é que era!

Muitos ainda se lembram, com certeza. As cachopas abalavam de madrugada para a Senhora da Guia, da Saúde, da Mó, para o Senhor da Serra, para Santa Bárb’la… Eram farnéis, sete saias de balão, os sapatos embrulhados debaixo do braço e uma dúzia de jumentos que transportavam, engalanados, as devotas avós de antanho. E a quem perguntava: “Para onde vão?”, respondiam álacres: “Vamos prá festa!”.

Castamente caiada, a capelita branquejava no pico da serrania lá muito longe, muito alto, e os olhos vivos das raparigas encaminhavam-se para lá, no entusiasmo duma cantiga, esperançados num grande milagre de amor, do seu amor.

Quando a nossa fatigada diligência ia apanhar os ranchos, já perto da ermida onde os foguetes trovejavam agradecimentos, eu pedia à minha mãe que me deixasse ir a pé. E a Rosa Celeste, a filha do nosso caseiro, orgulhava-se toda de levar pela mão o menino da Senhora. Arrepiavam-me os pobrezinhos chagosos, epilépticos, barulhentos e eu rezava com o rancho, nos “cruzeiros”, a todos os santos e santas que estão na côrte dos céus “para que nos dêem saúde e aos nossos gadinhos, nos livrem de maus vizinhos e da ira dos inimigos de longe e de ao pé da porta… Amém, Padre-Nosso, Avé-Maria”. Era a avó da Rosa que aplicava a reza, mesmo de cima do burriço, e todos correspondiam recolhidos.

Depois continuava a marcha, cantando em coro, ao desafio, deixando aqui 5 réis, ali um naco de pão, mais adiante uma sede de vinho na sacola, no bornal ou na cabaça dos mendigos intermináveis.

Era já perto da ermida. Tendas de vinho, pão e farturas, barracas de louça, comidas, brinquedos… sei lá! Os meus olhos de 7 anos espetavam-se nos comboios de lata e nos polichinelos barbudos que subiam por uma vara à cata duma fugitiva columbina… Que lindo tudo aquilo! Que saudades!

O pó cortava-se à faca. Dançava-se. Era um calor de rachar. O rancho entrava na capelinha. Todos rezavam e ouviam inflamados sermões de promessas.

Ofereciam-se votos. É vivo ainda um pequeno proprietário dos meus sítios, que uma vez, adoecendo gravemente, prometeu ao Senhor da Serra a sua junta de bois em troca da saúde recuperada. Curou-se e arrependeu-se. Contou o caso à mulher e esta verberou-lhe a precipitação: “— Tu estavas doido, homem! Um dinheirão! Quando o arranjaremos? E está aí a romaria!”. A festa chegou realmente e era de ver o “miraculado”, em lágrimas, confrangido, diante do altar, na ermida: “— Ó Divino Senhor da Serra, perdoai-me os bois, eu estava doido, a minha Maria bem mo disse!” Disse e fê-lo. Não queria ela fazê-lo. Mas ele venceu. A promessa foi cumprida.

Mas… estávamos na capelinha. Ofereciam-se muitos ex-votos. Depois, em seguida à missa enorme, com um enorme sermão, era a merenda debaixo das carvalheiras. Esfaqueavam-se os coelhos tostados e os loiros leitões e os cabritos de espeto. O vinho corria a jorros. O alarido aumentava.

Depois da procissão, que passara num recolhimento impressionante, rompiam as danças, as rifas, os desafios e… arrulhavam os namoros cheios de pó e ilusões — estômago e coração a transbordar de vinho e amor.

Um cantador que aludiu a um namoro… Não se sabe! Talvez. Um miúdo que roubou um púcaro duma tenda. Correrias, fritos, empurrões, “sarrabulho”; e um valente de Presa garante que o ladrão é da Portela “que é terra de ladroeira”. O que foste tu dizer! Um da Portela, que ouvira, dá o tom com uma valente cacetada: Pá… á! E começava então verdadeiramente o arraial… Cruzavam-se cacetes da Presa com os varapaus da Portela. As mulheres insultavam-se fritando, empurravam-se, descompunham-se… enquanto a refrega masculina continuava acesa, movimentada, quase sem palavra, numa cadência trágica de cacetadas, vivas e um ou outro gemido prolongado dum corpo que se estende.

Que poético, meus senhores! Que lírico e bucólico panorama! Dava a impressão de que ficaria tudo raso. Desapareceram tendas, mutilaram-se coretos, evacuou-se o largo. Pelos caminhos convergiam lentamente os ranchos — cabeças atadas… e novas cantigas e novos ditos espirituosos e comentários… e o regresso a casa.

Cansados, exaustos poeirosos, amachucados, aproximam-se das suas casas. Donde vens?, perguntava-se. Venho da festa!, respondia-se. E divertiram-se? Eh! isso é que foi! Bordoada de criar bicho, cacetada a rodos… mas ninguém morreu. E o barbeiro da terra tinha ainda que fazer para muitos dias, a encanar ossos e a dar pontos artificiais.

Mas que romarias, que heróicas romarias do amor antigo! Quando hoje se vai e vem de camioneta às nossas romarias, de cachopas empoadas e quase despidas, de farnéis-dieta e águas medicinais, há que ter saudades das velhas romarias buliçosas do Portugal romeiro.

Voltamos das primeiras romarias deste ano e sentimos, em tudo, que a Humanidade sofre, que o género humano está doente e que muita razão teve o episcopado Português em reprimir certos arraiais, certos divertimentos cujo espectáculo talvez ainda nos deixe saudades, mas cuja oportunidade — não há dúvida — deixou tetricamente de verificar-se. Somos solidários com os sofrimentos alheios. Por outro lado, fiquemos descansados, continua ainda e sempre a romaria eterna do amor, a romaria heróica do amor português — amor de Deus e dos homens — solidário com todos os povos e todos os séculos.

Bendita a romaria heróica dum amor assim!

D. Alvaro – Os viscondes d’Algiao

Padre João Eu sei lá o que ele é ! Um maluco, um doidivanas, que nunca há de tomar juízo  nem caminho! Insigne jogador de pau, pimpão de feiras, etc., etc. Um homem de quarenta anos, viúvo e com filhos, meter-se em partidos contra o irmão ! …  (…)

D. Álvaro (erguendo-se, e num tom mais familiar) — Pois bem ! … Acabemos com estas recapitulações, que me incomodam  Sei que fui um grande extravagante; que malbaratei duas fortunas importantes, e que sempre me valeu o mano D. António! Sei que me educou a filha; que me sustentou o filho em Coimbra por sua livre vontade; que enquanto eu, já com esta idade! — passeava, caçava, jogava o pau pelas feiras, e abria cabeças pelas vielas, meu irmão, não só me não dirigia a mais pequena reprimenda  mas até cuidava no meu bem estar, nas minhas comodidades. Há muito tempo que conclui que sou, ou fui, um doido  um estouvado, um perdulário, e o senhor um bom irmão, homem de siso, generoso, um segundo pai, sem (desgraçadamente!) a autoridade que este titulo traz consigo  Sei tudo isto, repito; e sei também que não sou ingrato, e que o reconhecimento não me sai do coração, mesmo agora que andamos de armas voltadas um contra o outro.

“Os viscondes d’Algiao: comédia” – César de Lacerda (1875)

Visconde de Moreira de Rei – Justiça de Fafe

António Augusto Ferreira de Melo e Carvalho, Visconde de Moreira de Rei, nasceu em Fafe no ano de 1838 e faleceu em Lisboa em 1891. Cavaleiro da Ordem de Cristo, Fidalgo da Casa Real e deputado às Cortes, o Visconde de Moreira do Rei era político influente na sua terra e, por natureza do seu carácter, pessoa pouco dada a receber afrontas.

Narra a lenda que, tendo chegado atrasado a uma das sessões, foi veementemente censurado por outro parlamentar com o título nobiliárquico de marquês, tendo este inclusive usado modos grosseiros ao ponto de lhe chamar “cão tinhoso”. Perante semelhante afronta, o Visconde de Moreira de Rei fingiu ignorar e mostrou-se impávido como se nada tivesse ouvido a seu respeito. Porém, após os trabalhos parlamentares, dirigiu-se ao marquês pedindo-lhe explicações ao que este, em lugar de se desculpar, arremessou-lhe as luvas na cara desafiando-o para um duelo.

Conforme as regras estabelecidas, cabia ao ofendido escolher as armas com que se iriam bater em duelo. Ao contrário do que seria de esperar, o visconde não escolheu espadas nem armas de fogo, optando antes pelos varapaus à boa maneira minhota. Exímio no manejo do varapau, arte marcial que o seu opositor não dominava e certamente até a considerava grosseira, aplicou uma valente sova no marquês e, desse modo, desforrando-se do insulto de que fora vítima.

Perante tão hilariante duelo, o povo não se conteve e gritou:

– Viva a Justiça de Fafe!

ver: “Barão de Espalha Brasas” – Inocêncio Carneiro de Sá

“O Jogo do Pau, ou esgrima lusitana, é uma arte marcial portuguesa, praticada com um único e maior, ela foi introduzida no Rio de Janeiro por imigrantes portugueses no século XIX, muitos desses imigrantes se disseminaram nas maltas de capoeiristas, inserindo essa luta dentro da capoeira. No inicio da era republicana no Brasil, as gangues de capoeiristas foram finalmente banidas do Rio, a Capoeira passaria por processos que a tornariam no é hoje, uma arte marcial como esporte, alem de uma expressão cultural, felizmente não haveria mais lutas sangrentas pelas ruas, mas nesse processo a o uso do jogo do pau no Brasil também praticamente se perdeu, pouquíssimos ainda o conhecem. Na adolescência, meu personagem trabalharia num armazém onde seu patrão, que na verdade é um mestre nesta arte, decide lhe ensiná-la após conhecer o seu caráter e gosto por lutas. Um dia esse garoto cresceria e usaria dois bastões, capazes de se distender e unirem-se numa forma maior, como uma arma que já vi usada pelo do Red Robin, acho.”

by Besouro-Negro