Nicolau e Venceslau

Uma história para crianças:

TODOS conheciam naquela terra o Nicolau e o Venceslau, dois homens nem moços nem velhos, nem altos nem baixos, nem bonitos nem feios, um gordo outro magro.

Ora o Nicolau tinha uma fazenda onde havia uma figueira, que dava belos figos moscateis. O Venceslau foi lá um dia, trepou à figueira, apanhou muitas dúzias de figos e meteu uns para a barriga e outros para as algibeiras.

Deu por isso o Nicolau e protestou que havia de arranjar um varapau para dar uma sova no Venceslau, que era ratoneiro e marau.

Foi ter com um marmeleiro que havia na fazenda, e o marmeleiro disse-lhe:

-Como estás tu, ó Nicolau?

E o Nicolau respondeu-lhe

-Estou bom e quero um dos teus ramos, para arranjar um varapau, para dar uma sova no Venceslau, que é ratoneiro e marau.

E o marmeleiro respondeu-lhe:

-Se queres um dos meus ramos, arranja um machado para me cortares.

O Nicolau foi ter com um machado, e o machado disse-lhe:

-Como estás tu, ó Nicolau?

E o Nicolau respondeu-lhe:

-Estou Bom e quero que cortes um ramo de marmeleiro, para arranjar um varapau, para dar uma sova no Venceslau, que é ratoneiro e marau.

E o machado respondeu-lhe:

-Se queres que eu corte o marmeleiro, arranja uma pedra para me afiares.

O Nicolau foi ter com a pedra e a pedra disse-lhe:

-Como estás tu,ó Nicolau?

E o Nicolau respondeu:

-Estou bom e quero que afies o machado, para cortar o marmeleiro, para arranjar um varapau, para dar uma sova no Venceslau, que é ratoneiro e marau.

E a pedra respondeu-lhe:

-Se queres que eu afie, arranja água para me molares.

O Nicolau foi ter com a água que havia no poço da fazenda, e a água disse-lhe lá de baixo:

-Como estás tu ó Nicolau?

E o Nicolau respondeu-lhe:

Estou bom e quero que molhes a pedra, para afiar o machado, para cortar o marmeleiro, para arranjar um varapau, para dar uma sova no Venceslau, que é ratoneiro e marau.

E a água respondeu-lhe:

-Se queres que eu molhe a pedra, arranja que a nora me leve lá para cima.

E o Nicolau foi ter com a nora, e a nora disse-lhe:

-Como estás tu, ó nicolau?

E o Nicolau respondeu-lhe:

-Estou bom e quero que levantes a água para molhar a pedra, para afiar o machado, para cortar o marmeleiro, para arranjar um varapau, para dar uma sova no Venceslau, que é ratoneiro e marau.

E a nora respondeu:

-Se queres que eu levante a água, arranja que o boi me faça andar.

O Nicolau foi ter com o boi, e o boi disse-lhe:

-Como estás tu, ó Nicolau?

E o Nicolau respondeu-lhe:

-Estou bom e quero que faças a nora andar, para levantar a água, para molhar a pedra, para afiar o machado, para cortar o marmeleiro, para arranjar um varapau, para dar uma sova no Venceslau, que é ratoneiro e marau.

E o boi, que era muito manso e obediente, fez andar a nora, e a nora levantou a água, e a água molhou a pedra, e a pedra afiou o machado, e o machado cortou o marmeleiro, e o Nicolau arranjou um varapau, com que deu uma sova no Venceslau, a quem chamou de ratoneiro e marau.

Mas como não era peco, o Venceslau tirou o varapau das mãos do Nicolau e deu-lhe um troco menos mau.

E assim ficaram ambos castigados: por furtar os figos o Venceslau e por ser vingativo o Nicolau.

Em “Serões” revista mensal ilustrada Nº8 – 1906

Carlos Relvas


Foi um dos pioneiros da fotografia em Portugal.

Era uma das figuras mais simpáticas de Portugal, no seu tempo, admirado pela sua elegância, perícia e arte, como cavaleiro e toureiro amador, pelo seu delicado talento artístico de fotógrafo, um distintíssimo sportman.

Como sportman tornou-se notável em todos os exercícios físicos, precisos para aliar a destreza à agilidade, a serenidade à, coragem. Hábil atirador de pistola e de carabina, dextro jogador de pau, de florete e de sabre, foi também notável na equitação.

Offerece A Sociedade do Jogo do Páo – A Carlos Relvas – Gollegã 3 de Maio 1883

Sarau do Ginásio Clube Português com Carlos Relvas:
Finalmente a ultima festa é um grande sarau no Colyseu dos Recreios, para o qual está
designado o dia 17 de dezembro. Compôrse-ha de gymnastica, esgrima e equitação; e, segundo nos informam, exhibe se pela primeira vez um assalto de esgrima de pau, em
que toma parte o sr. Carlos Relvas.

Avô ribatejano mestre de varapau

Ribatejano, o meu avô paterno gostava muito do rapaz que eu era e eu retribuía-lhe a amizade com cigarros Definitivos. Também levando-o aos espetáculos de luta livre no Parque Mayer. Ele gostava muito dos combates. Eu gostava mais da alegria e da raiva que os lutadores lhe davam. Ria-se e gritava. Levantava-se do lugar, empunhava a bengala, recordava as lutas da sua mocidade.

O meu avô foi mestre de varapau e por causa da sua jaqueta de alamares e calça afiambrada, teve que dar muita cacetada em fidalgotes arrogantes. Também gostava de tomar uns copos mas, diz o meu pai, por mais carregados que levasse os machinhos, nunca bateu em velhos, aleijadinhos ou dementes e nunca arrastou a asa a mulher casada.

Era um galhardo defensor dos fracos e numa daquelas noites de chuva e escuridão, depois de três litros de briol, até desafiou e fez uma espera ao Diabo que, temeroso, não apareceu na azinhaga do costume. Para a valentia do meu avô havia apenas duas qualidades de homens: os bons e os maus (os justos e os injustos, os leais e os traiçoeiros).
                                                                                                                                                         “MATA-CÃES” Fernando Correia da Silva

Aleijões sociaes

Cena de jogo do pau em teatro do sec. XIX
SCENA XI – MATHIAS, PEDRO, THEREZA, DOMINGOS

DOMINGOS de varapau na mão, áparte.
-Lá está o Pedro amarrado à moça !

PEDRO à parte
O Domingos cançou-se de esperar e vem aqui procural-a; cuida que me mette mêdo por ser mais rico?… Pois não a leva assim, com os dianhos ! 

TEREZAvendo Domingos
Ai, meus peccados ! São quasi horas de jantar e eu aqui posta de conversa !

DOMINGOS 
-Pódes conversar, Thereza ; eu ajudei tua irmã a dar de beber ao gado.

PEDRO, a Thereza
Queres que eu te acompanhe a casa ?

DOMINGOS, sorrindo
-Ella terá mêdo ? Precisas de quem te guarde, moça ?

PEDRO, a Domingos
-A cachopa estava a fallar comigo ; não tens cá que dizer chacotas, ouviste.

DOMINGOS, encostando-se ao pau
-Apósto que me bates, se eu brincar com ella ?

THEREZA
-Jesus ! Não façam tolices, por amor d’isso, vou-me já embora.

Vae-se.

SCENA XII – PEDRO, DOMINGOS, MATHIAS

PEDRO, querendo acompanhal-a
Disse que ia comtigo, está dito ! Tambem não tenho mêdo que me engulam.

DOMINGOS, atravessando-lhe o pau diante das pernas
-Não falles assim, homem !

PEDRO, levantando o seu pau
-Agora, pagas-m’o

DOMINGOS, fazendo jogo
-E tu a mim !

Fórma um sarilho, correndo sobre o Pedro ; este, recúa, defendendo-se, em toda a largura do terreiro, e quando chega à parede, attaca e obriga Domingos a recuar até ao lado opposto.

MATHIAS
-Rapazes ! rapazes !… accomodem-se, com a bréca ! vejam se se estragam, que não podem depois ir para o Brazil !

Os dois continuam jogando o pau, ora avançando um, ora outro

SCENA XIII

PEDRO, DOMINGOS, MATHIAS, DIONISIO

DIONISIO, correndo, com um varapau e fazendo jogo de longe
-Funga-lhe a venta, com seis centos diabos ! Jogam como duas fragatas ! Mas se se matam ou quebram as cabeças, não os levarei d’esta viagem. Alto ahi ! (metendo o seu pau de permeio) Alto ahi ou a coisa é comigo !

DOMINGOS, ensarilhando o pau para ele
-E que dúvida tem ?!

Atira-lhe uma paulada, que Dionisio varre, correspondendo-lhe com outra que lhe parte o pau

DIONISIO, rindo
-Eu sou mais duro de roer, meu filho !
-Aprendi com o Joaquim Cordoeiro, que era pimpão de feira, e um mestre de se lhe tirar o chapéo ! Mas dou-te a minha palavra de que tambem não trabalhas mal ; (apontando para Pedro) e cá o rapazote não te fica atraz !

PEDRO, a Mathias 
-Conte comigo, tio Mathias.

DOMINGOS, a Pedro
-Ó moço, isto acabou aqui. (dando-lhe a mão)
-Não te vás embora por minha causa ; e casa com a Thereza, se queres, que eu não me atravesso diante ti.

PEDRO, tomando-lhe a mão
-Obrigado ; estou resolvido a ir tentar fortuna

DOMINGOS
-Olha, eu não quero casar, homem ; foi tudo uma asneira. Pareceu-me que andavas a desafiar-me e por isso te fiz frente ; mas sou teu amigo e cedo-te o campo como se fosses meu irmão.

PEDRO
-Agradeço-te essas palavras, Domingos ; depois de ouvi-las, com mais razão devo partir.

Domingos fica pensativo.

 ___

“Aleijões sociaes ; O casamento e a mortalha no ceu se talha” – Francisco Gomes de Amorim (1870)

Pela ruralidade – Varrer a feira

Podíamos recuar mais no tempo mas vamos falar dos anos cinquenta/sessenta pois são aqueles que foram sentidos pelo, à altura petiz, agora humilde redactor deste arrazoado com a madureza que o tempo inexoravelmente emblema. Assim sendo poder-se-á logo à leitura do título deste escrito levantar nos eventuais leitores uma dúvida que vamos descodificar.

No meio rural naquela data sobretudo antes do aparecimento da televisão em 1957 nada acontecia. Eram então as romarias anuais e as feiras, locais onde as pessoas acorriam. Ir à feira de Nespereira era uma mais-valia que todo o agricultor ou simples cabaneiro das redondezas não desperdiçava. Eram feiras onde o gado vacum arouquês tinha forte presença conduzido por moços boieiros um à frente e outro atrás da manada. Como mera nota já por aqui falei da condução do gado comprado por negociantes na feira do Marco de Canavezes que ia directamente a calcantes para o matadouro da Corujeira no Porto. Dito assim para os mais novos isto não passa duma ironia, mas ainda há testemunhos vivos do que acabo de dizer.

Mas voltando ao título “varrer a feira”. Hélas, qual medida higiénica qual quê, as vassouras eram de giesta e convenhamos que varrer a bosta do recinto após a feira não seria muito viável. (Mudando a agulha, na cidade do Porto naquela data as ruas eram varridas e também lavadas coisa que na actualidade não me parece.) Mas vamos então “varrer a feira”. Todo o feirante que se prezava ia à feira com um “marmeleiro” que tinha a dupla função, tanger o gado ou como arma de defesa ou ataque conforme as circunstâncias. E nas feiras as sarrafuscas aconteciam frequentemente, quando a coisa aquecia, havia, não diria profissionais, mas gente que gostava das confusões, pronta a desancar. Alguns eram referenciados e orgulhavam-se na venda lá da terra, com a caneca avantajada de quartilho e meio, à mão de semear, dum branco surrado, com prótese na asa e com dois gatos na rachadela, a esbordar de tintol, de varrer a feira duma ponta à outra. E a verdade é que eram temidos e vistos como musculados, olhados com respeitinho!

Passados estes anos as feiras já não apresentam estas características. O gado quase desapareceu do mapa e as pessoas já estão mais civilizadas deixando-se da “varredura” das feiras. 

Em contra-ponto de épocas podemos dizer que agora há outras varreduras pelo reino, leia-se sacaduras(sacanices se preferirem) ou limpezas a começar ao mais alto nível vindo por aí abaixo até ao simples esticão na rua da carteira da senhora idosa, tudo na mira do pilim, e roubos com violência são o dia a dia mas o ministro da justiça deve dizer que está tudo sob controle, a lei está a ser cumprida!…. O povo é sereno irá votar na maior e se abstenção for elevada tanto dá os deputados serão eleitos à mesma!… Mas já estou a descambar pois do que quis falar foi mesmo das “arruadas” de antanho na feira de Nespereira.

Fiquem bem, antonio
Sábado, 19 de Setembro de 2009 

Varrer a Feira

Varrer uma feira, correr a pau toda a gente que nela se encontra; *1

“João do Couto, se varria uma feira, nem sempre saia com a cabeça ilesa.” – Camilo Castelo Branco – O Degredado.

“Mas eram farsolas temidos, que se não benziam duas vezes para varrer a pau uma feira inteira.” – Aquilino Ribeiro – A via sinuosa.

“se os tais homens das bandeirolas me tornam a passar por as terras, sempre lhes meço as costas com um marmeleiro, que lá tenho, e que já me serviu para varrer a feira de Santo Estevão.” – Júlio Dinis – A morgadinha dos canaviais.

“como também da mesma laia, capaz de cobiçar a mulher do próximo e varrer uma feira a estadulho” – Miguel Torga – Um reino maravilhoso


___________________________________________

1 – Grande enciclopédia portuguesa e brasileira, Volume 34

Entre nós, apenas algum, menos anémico, descendente de apopléticos menos vezes sangrados, sustenta ainda a bravura hereditária da raça nobre, brandindo o marmeleiro legado ao canto dos solares da provincia pelos extintos capitães-mores, para, num repente sanguíneo de colera ou de ciume, varrer uma feira ou estender à bordoada no fundo de uma azinhaga o canastro de um rival.

em “As Farpas”, Ramalho Ortigão.