Franceses famintos

Junho à lareira, de olhos lacrimejantes, o neto João não perdia pitada da conversa entre o avô e a mãe. Ao ouvir as últimas palavras do ancião, empinou-se, feito estaca, e atirou: 

– Eu vou com o avó!

E ali estavam, que não houve ralho da mãe nem choro das irmãs que o demovesse. Marcelo, que a princípio contrariou o desejo do garoto, embora lhe gabasse a tesura e a amizade, acabou por ceder quando o ouviu dizer, muito sério, que queria ir ver o pai e o tio, e sempre podia ser um arrimo para o avó, quanto mais não fosse para lhe cuidar do burro.

Espigado e comprido como o tio, ao rapaz todos davam a idade de treze ou catorze anos, quando andava ainda nos doze. E que adorava o tio e o avô, ao primeiro por não haver homem mais valente a combater franceses, e ao segundo por ser o mais emérito jogador de pau da região, sabia-o a garotada da aldeia que lhe escutava as loas com que enfeitava os seus heróis familiares. Ele próprio. treinado pelo pai e pelo avó na arrochada, já pedia meças a moços mais velhos e encorpados, que esta arte era como a de artesão a passar de pais para filhos e netos. 

O velho ainda sorria ao recordar estes factos, satisfeito por ter trazido o rapaz consigo – via-se ser um Marcélo autêntico, ao melhor estilo do quem sai aos seus não degenera -, quando parou na berma da estrada e retirou dos alforges do asno dois nacos de toucinho frito para reconfortar os estômagos.

Tinham feito quase todo o percurso da gândara entre a Mealhada e Souselas – para além do pinheiral bastio, já vislumbravam umas mamoas escalvadas, que a davam por finda com o tempo a negacear entre um sol pálido e nuvens de chuvisco, sem sombra de percalço a empecer-lhes o caminho. E mal amesendaram na ribanceira da estrada, logo os sarilhos lhes surgiram, com os dois diabos postados a dez passos entre o arvoredo. Foi o rapaz que os lobrigou e, em voz murmurada. para não causar alarme, chamou a atenção do velho.

– Olhe, avó, acolá, dois vagabundos de olhos postos em nós. Seguiu o Marcêlo a olhada do neto. Avistou os homens. mais pele do que osso, de rostos esquálidos e olhos encovados, mais mortos que vivos, mais implorativos que hostis. Pelo azulado das vestimentas, feitas em farrapos e cobertas de sujidade, descortinou-lhes a qualidade de militares. À vista, não traziam armas. Um deles. amparado a um tronco de pinheiro, segurava o outro pelo sovaco. de roupa manchada de sangue seco no peito. 

À cautela, o velho agarrou no cacete de marmeleiro e disse ao rapaz que não tivesse medo, que os homens não podiam com uma gata pelo rabo. Depois arvorou um ar prazenteiro e saudou:

– Olá, amigos. são servidos? 

Sem sair do local, um deles implorou: 

-Faim, Faim- ao mesmo tempo que levava a mão a boca em gesto de comer. 

-Ó avó, não são dos nossos, pelo falar, são franceses. Vamo-nos a eles, antes que nos matem – alarmou-se o rapaz, a pegar no porrete que tinha a seu lado. 

– Calma, meu neto, são apenas dois homens esfomeados. um deles à beira do colapso, sem forças para nos inquietarem. Larga o marmeleiro, vai ao alforge do asno por mais comida e deixa o caso comigo. 

O miúdo obedeceu, enquanto o avô, descansando o corpo sobre o pau debaixo da axila, fazia gestos amigáveis aos intrusos, para que se aprochegassem dele que, onde comiam dois, comiam quatro. O que trazia o outro ao dependurão, encostou-o ao pinheiro e avançou vacilante, mas de olhar voraz para as taliscas de entremeada frita e para a broa que o rapaz entregava ao avó. 

-Merco, merci – balbuciou ao receber a comida da mão esquerda estendida do Marcêlo, de mão direita no pau que o amparava, a jogar pela cautela, não fosse o desgraçado passar-se dos carretas e pensar em atacá-lo.

Comeu avidamente, via-se que pelo estreito nada lhe tinha passado nos últimos dias. De seguida. voltou para junto do parceiro, com uns restos nas mãos. Mas o pobre diabo nem forças teve para engolir. Estava nas últimas, na opinião do velho, que não perdia um gesto do que se passava diante dos olhos.

O homem voltou de olhar esgazeado e implorativo, de dedo apontado ao odre dependurado no arção do burro:

-De l’eau, par Dieu.

Pelo gesto. Marcêlo entendeu o pedido. Disse ao neto que lhe chegasse a água. O rapaz hesitou, percebia-se que discordava do avó, a dar de comer e de beber aos inimigos contra os quais o pai e o tio arriscavam a vida. 

– Não tenhas medo, João. Aprende que água e pão nunca se nega a um cristão, mesmo nosso inimigo – sossegou o avô.

O ferido ainda engorgitou uns goles de água que o companheiro lhe esguichou na boca entreaberta. Recusou a comida. incapaz de engolir. Recuperado o odre, o velho entendeu que eram horas de abalar. Montou o neto no burro e despediu-se com afabilidade: 

– Fiquem com Deus, que mais não vos posso fazer. Ainda tenho muito caminho pela frente. 

O que se sustinha nas pernas lançou-lhe um olhar de gratidão. Depois, desesperado. ficou a chorar debruçado sobre o ferido. 

O neto ia zangado com o avô. Cem passos andados increpou-o: 

-Ó avô. porque é que não os matámos? Ali, à mão de semear, foi uma pena não o fazermos. Duas cacetadas e estavam feitos. 

O velho olhou o neto nos olhos e disse-lhe:

– Vais responder à minha pergunta, mas de mão na sua consciência, que já és um homenzinho. Achas que te sentias honrado e destemido a matar dois homens a cair de fome. um deles já nas vascas da agonia, praticamente indefesos? 

O rapaz embezerrou e manteve-se na dele. 

– Não é o que eles fazem à nossa gente? Não nos pilham e matam sem cuidar de ser velho, mulher ou criança? Não são eles que vêm à nossa terra fazer-nos mal? 

Marcêlo percebeu que tinha no neto um antagonista difícil de convencer.

– Não respondeste à minha pergunta. E não respondeste porque sabes que tenho razão. Não se mata quem está meio morto. Fazê-lo seria cobardia, por muito que o merecessem. 

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A Paixão de Araci” – José Marques Vidal (2012)

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Rixa de varapau nos franceses

Queixas se tinham feito ao general Thomiers, de que os moradores das Caldas e das terras circunvizinhas não tratavam bem os seus soldados, de que resultou mandar ele para ali alguns de gradadeiros do regimento nº58. No dia 27 de Janeiro de 1808 altivos passeavam estes soldados pela praça e ruas da vila, quando uma chufa dita por um homem do povo levou um dos tais granadeiros a puxar pela espada contra ele.

Acolhido o homem em casa de sua mãe por uma sua irmã, que por fóra fechara a porta á chave, de prompto foi arrombada pelos franceses, que sem respeito algum ao sexo, apalparam violentamente a rapariga por onde muito bem lhes pareceu, a pretexto de lhe tirarem a chave.

Aos gritos da victima acudiu um cadete do segundo regimento do Porto (18 de infanteria), que lançando mão a um pau, com ele investiu os soldados franceses. Este exemplo de resolução foi logo seguido por outros individuos do mesmo regimento, de que resultou serem feridos dois ou tres dos agressores, e ficar a dita rapariga com os peitos todos negros e contusos das pancadas que um deles lhe tinha dado com o punho da espada.
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“Historia da guerra civil e do estabelecimento do governo parlamentar em Portugal. Segunda Época, Guerra da Peninsula, Tomo I” – Simão José da Luz Soriano (1870)
 

Soldados franceses desarmados a varapau

Em semelhantes circunstancias qualquer exercito, por mais bravo que seja, não passa de um tímido e desprezível rebanho, e era neste estado que o exercito frances tinha marchado de Espanha para Portugal, e assim se aproximava da capital deste reino. Se uma voz de alarme se levantasse entre os habitantes do país semelhante exercito seria infalivelmente disperso e aniquilado. E com efeito, casos houve, em que grupos de dez e doze soldados, armados de espingardas, se deixaram desarmar por dois e três paisanos: munidos do seu varapau, os campinos do Ribatejo, também pela sua parte fizeram boa colheita, espancando e matando um bom numero deles, e a não serem as medidas de vigilância tomadas pelas autoridades locais, muito maior numero de vitimas teria logo tido lugar entre os invasores, que á maneira de um formigueiro se viam ir desfilando uns atrás dos outros ao longo da margem do Tejo.

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“Historia da guerra civil e do estabelecimento do governo parlamentar em Portugal. Segunda Época, Guerra da Peninsula, Tomo I” – Simão José da Luz Soriano (1870)


 

Lenda do Buraco dos Franceses

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(Cova dos Franceses – Vale de Madeiros)

Há em Vale de Madeiros, no caminho que desce para o rio uma bifurcação, que termina de modo brusco, numa ravina. Chamam a este sítio buraco ou cova dos france­ses. Conta a lenda que, aquando das invasões francesas, um destacamento do exército de Massena, passou por aqui para fazer os seus saques. A população não lhes resistiu, pois não tinha como e até lhes deu comida e muito vinho. Por isso todos os soldados apanharam uma grande bebedeira. Foi então a vez dos habitantes que, armados de foices e varapaus, empurraram a legião para a dita ravina, livrando-se dos franceses, ainda que pelo preço de muitos quartilhos de vinho.

História contada pelo falecido Sr. João Duarte
por Ana Mouraz – Canas de Senhorim “Os Lugares e os Nomes”
Edição do Núcleo Filatélico da AHBV Canas de Senhorim

Nobre sacrifício guerreiro

Apesar de uma arma de ultimo recurso devido à óbvia vantagem das armas de fogo, o varapau o chuço e a foice (roçadora) eram as armas em maior número nas mãos do povo português.

Quatro valorosos portugueses, desprovidos de armas de fogo e apenas com as suas foices (roçadoras, calcula-se), sacrificaram-se, certamente conscientes da inevitabilidade da sua morte, entrando na boca do dragão, armados com esta rudimentar arma. Porém, não terá sido um acto isolado, como o já citado, general Napier

«Veementes na cólera e estimulados […], precipitam-se das montanhas como homens privados da razão e muitos irrompiam furiosamente pelos batalhões franceses, onde eram mortos.»

“Resultou destes diferentes ataques ser livre a capital do Porto, pôr-se em fugida um General experimentado, que comandava esses chamados valorosos vencedores de Marengo, Austerlitz e Jena, sendo acossados por Paisanas descalços, armados pela maior parte de foices, chuços e paus; vermos seguras de invasão as províncias do Minho e Trás-os-Montes; 

(…)
Morreram da nossa parte 4 valorosos homens, perda considerável pelo seu valor, o qual os sacrificou até ir com uma foice no Peso atacar-lhe as fileiras;”

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Minerva Lusitana, n.º 9 , de 21 de Julho de 1808

Guerrilhas de varapau ajudam a deter Junot

A 17 de Julho Loison tem ordens de Junot para aniquilar a insurreição do Norte, dirigindo-se para o Porto. Leva 2.600 homens, boa cavalaria e 27 carros de bagagem e armamento. Chega a 20 a Lamego que se rende, segue para a Régua, onde instala uma guarnição e em seguida para Mesão Frio, onde entra com 8 peças de artilharia. Quer continuar para Amarante, chega aos Padrões da Teixeira e enfrenta tropas desordenadas de Francisco da Silveira: os voluntários do seu cunhado, Gaspar Teixeira e milícias de Vila Real, a guerrilha de Ascanho e voluntários de Miranda, Guimarães e outras milícias com os seus fidalgos. A retaguarda de Loison é investida com estratégias de guerrilha e vai confrontando emboscadas a sul de Padronelo, por vezes efectuadas por paisanos armados de paus, como o grupo de homens de Canelas. Destroem peças de artilharia, roubam e inutilizam a pólvora, bagagens e carruagens, matando o ajudante de Loison, que confundem com ele. O objectivo é desorganizar o exército francês impedir que Loison chegue ao Porto, o que conseguem. Loison regressa à Régua e pelo caminho até Almeida incendeia e mata quanto aparece. (…)

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Maria do Carmo Serén – “Carisma e realidade do General Francisco da Silveira Um militar de carreira em momento de viragem” Revista da Faculdade de Letras, HISTÓRIA, Porto, III Série, vol. 10- 2009, pp. 91-102

Cuisine Française

Havia um homem que, à passagem dos franceses, se escondeu num cipreste antigo, tendo aí permanecido até que vencido pela fome e pela sede, saiu por fim do esconderijo, dirigindo-se então para a sua casa, que ainda distava algumas centenas de metros. Pelo caminho, eis que o cheiro a comida, vindo de sua casa, lhe encheu as narinas. Munindo-se de um pau, entra em sua casa e encontra um francês, que se entregava às lides culinárias e que ficara por cá depois da retirada dos franceses. O homem, vendo o  francês de costas, arruma-lhe uma grande paulada na cabeça, à qual o francês teve morte imediata. A comida, essa bem cheirosa, estava ali pronta para aquele estômago faminto.

Lenda do marmeleiro do francês

Aquando da primeira invasão francesa o exército invasor seguia do Covilhã em direcção a Castelo Branco. 

Sendo informados da resistência que os guardava na Soalheira, alteram o seu itinerário. No Salgueiro do Campo o povo escondeu-se onde podia, levando consigo alimentos e pequenos tesouros, pois os Franceses eram vistos como filhos de Mafarrico. A resistência foi feita com a organização de pequenos grupos, tendo ficado um pequeno destacamento Francês no Salgueiro. O mesmo foi despachado aquando da vitória Anglo-Portuguesa sobre a França.

Quando a alegre notícia da expulsão dos Franceses chegou ao Salgueiro logo o tirano Francês foi duramente castigado. Após ter sido espancado foi enterrado vivo perto do cemitério. No local foi enterrada a vara de marmeleiro que ganhou raízes e se transformou num grande marmeleiro, a que se chama o marmeleiro do Francês.

http://salgueirodocampo.planetaclix.pt/marmeleiro_frances.htm

Vá de malhar nos de França

Veio um almocreve do Norte e pôs-se a tartamudear em voz baixa um conto atrapalhado sobre a desgraça que o Maneta Loison levou às Caldas da Rainha. Que arcabuzaram nove soldados portugueses do Regimento do Porto lá aquartelados, por uma zaragata de vintém, começada com um beijo roubado por um francês bexigoso à mulher de um tambor carrapato e zangaralhão, mas fortalhaço e sanguinho, que saltara à bordoada ao bexigoso.”...

Vieram companheiros e vá de malhar nos de França, que todos vinham com moléstias de pele, sarnas e borbulhas, a abeberarem-se nas águas santas. Pior que feira varrida à paulada, quando os franceses responderam e se zangou um cadete de Gaia que parecia um touro de cajado nas unhas, que até nem se entende como não houve morte de homem.”

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“Razões do coração” – Álvaro Guerra (1991)

Jacinto Correia

Lugar de Atouguia, Gorcinhos – Mafra, finais de Janeiro de 1808: ao final da manhã, o jornaleiro Jacinto Correia, habitante da área, de 46 anos, casado e com filhos, dirige-se, como habitualmente, para casa com o produto do seu trabalho. No caminho, é abordado bruscamente por dois soldados franceses que o pretendem roubar. Jacinto Correia não teme e não cede, segue-se uma violenta luta entre os três homens. O jornaleiro saloio, homem de rija têmpera e habituado ao trabalho duro do campo, habilmente e com raiva, brande a foice roçadora que transporta e golpeia mortalmente os dois soldados que o atacaram.

Em pouco tempo, uma força militar francesa detém Jacinto Correia, que é presente a tribunal e julgado num Conselho de Guerra. Apesar de algumas autoridades locais tentarem o perdão do jornaleiro, o Tribunal empurrou o processo para uma incriminação do réu, que impunha punir exemplarmente.

Em determinada altura do julgamento, porque o jornaleiro apresentava uma atitude de serenidade e desafio, foi-lhe perguntado por Loison, “se o arrependimento já tinha exercido algum efeito no seu espírito”. A resposta, tão convicta como desconcertante, “se todos os Portugueses fossem como eu, não ficaria um francês vivo”

Jacinto Correia foi condenado à morte e fuzilado no campo da Alameda, no topo sul do Convento de Mafra, a 25 de Janeiro de 1808


Paisano dos arredores de Mafra

Invasões Francesas

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Lendo as obras de Oman, Weller ou Southey apenas ficamos a conhecer a Guerra Peninsular na perspetiva do comando britânico e, ainda assim, no que toca às operações da guerra convencional. A guerrilha, a sabotagem, a terra queimada entram mal nesta História. O povo e o país pouco mais são que o cenário ao fundo do palco onde é encenada a epopeia de Wellington e do seu exército. O mais que os portugueses do exército anglo-luso podem aspirar é o prémio para melhores atores secundários.

A guerrilha em Portugal foi mais dispersa (do que em Espanha) mas nem por isso impressionou menos os estrangeiros. A fúria dos camponeses nortenhos é assim descrita pelo general britânico Napier: «Veementes na cólera e estimulados […] pelas exortações dos seus padres, precipitam-se das montanhas como homens privados da razão e muitos irrompiam furiosamente pelos batalhões franceses, onde eram mortos. Outros […] rodeavam as montanhas e, caindo sobre a retaguarda, matavam dezenas de soldados tresmalhados e pilhavam as bagagens.»

O efeito da guerrilha em Portugal não foi negligenciável. Desgastou o invasor e obrigou-o a desviar das missões principais forças importantes, empenhadas em manter as guarnições em contacto e as estradas praticáveis. 

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Conta o barão de Thiébault, quartel-mestre do marechal Soult, a propósito do avanço sobre o Porto, em março de 1809: «A marcha do II Corpo pode comparar-se à de um navio no alto mar. Ao mesmo tempo que vai fendendo as ondas, estas vão-se cerrando atrás dele […] minutos depois da sua passagem, não resta nenhum vestígio dela.»

António José Telo, um dos autores citados na coletânea Guerra Peninsular, Novas Interpretações, vai mais longe: «Os autores ingleses que escreveram sobre a Guerra da Península só falam, praticamente, da atividade da primeira linha, pois era aí que estavam os britânicos. Muitos autores portugueses mais tradicionais cometem o mesmo tipo de erro e praticamente não mencionam ou consideram meramente acessória e quase folclórica a atividade de guerra irregular no teatro das operações de Portugal […] A guerra irregular foi um elemento muito importante para derrotar as Invasões Francesas em Portugal, embora, para que ela se pudesse exercer, fosse necessária a ação do exército de primeira linha.»

Povo

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Guerrelheiro de varapau em Monumento- “Ao Povo e aos heróis da guerra peninsular 1808 – 1814” – Lisboa.

Em 1808 Portugal não tinha exército para opor à França, não o tinha antes de a invasão de Junot se concretizar, muito menos ele existia em meados de 1808. Mas havia a alma do povo. Povo que viveu longos meses preocupado em sobreviver a um amargo quotidiano, suportou a intrusão estrangeira porque assim lho exigiram, «engoliu» o abandono da Família Real, aguentou a colaboração das «classes superiores». Mas a nostalgia deu lugar à raiva, que cresceu com a obrigatoriedade de dar pão e cama a um intruso agressivo, contribuir com os seus parcos rendimentos para a ostentação e sustentação do invasor, tolerar sevícias de toda a ordem e a toda a hora ao usurpador, ver a Monarquia Lusitana ser extinta e substituída por um certo Napoleão. Sentimentos acumulados que foram sendo libertados e que acabaram por explodir de forma generalizada e incontrolável.

Como o povo não tinha um exército que o enquadrasse, tornou-se ele próprio o exército, camponeses, pescadores, carpinteiros, serralheiros, milícias, e ordenanças, oficiais, padres, tudo gente vilipendiada, ferida no seu orgulho, munidos de artefactos domésticos como machados, varapaus, roçadoras, foices, martelos, facas, uma ou outra arma de fogo. O povo era o exército, anárquico mas motivado, rudimentar mas disponível, violento mas generoso.

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Decreto do Conselho de Regência (Dezembro de 1808):
 “(…) Sou servido determinar que toda a Nação Portugueza se arme pelo modo que a cada hum for possível: que todos os homens, sem excepção de pessoa, ou classe, tenhão huma espingarda, ou pique, e todas as mais armas que as suas possibilidades permitirem. Que todas as cidades, villas, e povoações se fortifiquem, para que, reunindo-se aos seus habitantes todos os moradores dos lugares, aldêas, e casaes visinhos se defendão alli vigorosamente quando o inimigo se apresente. Que todas as companhias se reunam nas suas povoações todos os domingos e dias santos para se exercitarem no uso das armas que tiverem e nas evoluções militares, compreendendo todos os homens de idade de quinze anos até sessenta anos (… )”

Portanto, a partir de meados de 1808, o povo pegou em armas contra o exército  regular de Junot e travou-se uma luta desigual, do fraco contra o forte, da anarquia contra a organização, da violência apaixonada contra a repressão. Travaram-se combates irregulares e estes «soldados sem uniforme» e «assassinos de estrada», como mais tarde chamou Massena a esta «turba popular», emboscavam os franceses a partir dos montes, assaltavam contingentes que marchavam imberbes em caminhos de difícil transitabilidade, acometiam de rompão vindos de matas densamente arborizadas.

Soult entrou em Portugal com cerca de 30.000 homens e retirou com perdas consideráveis de quase 50% sem que tais baixas se devam essencialmente a combates clássicos.

A Guerra Subversiva é tão antiga como a guerra em si; a Guerra Subversiva entronca geneticamente no ser português. De Viriato a Geraldo sem Pavor, de Deu-la-Deu Martins à padeira Brites de Almeida, do Frei Heitor Pinto a Jacinto Correia, portugueses há cujo ânimo apaixonado não deixam a Nação perecer, mesmo se eles perecerem.

“Adeus, meu Napoleão,
Que é quasi meia-noite,
Achaste em Portugal
Quem te désse muito açoite”

cit. Raul Brandão

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Jornal do Exercito N572

Invasões Francesas 200 anos.Mitos, Histórias e Protagonistas” Rui Cardoso

A Invasão de Soult e A Reconquista de Chaves aos Franceses” Tenente-coronel Abílio Pires Lousada

“A Invasão de Junot e o Levantamento em Armas dos Camponeses de Portugal. A Especificidade Transmontana” Tenente-coronel Abílio Pires Lousada

A milícia nas invasões francesas – Alexandre Sousa Pinto