Personagens jogadores de varapau

Em alguns casos, na literatura portuguesa, os personagens são descritos como afamados jogadores de pau, mesmo que os autores não aprofundem mais a vertente de puxador do personagem, é geralmente uma forma utilizada de imprimir valentia, força, coragem e outros valores nesse personagem.
Além dos exemplos já referidos neste blog, ficam aqui outros seis:


O Manoel da Clara
“De todos os rapazes da aldeia era o Manoel da Clara o mais querido das raparigas.

Fôra sempre um belo rapaz de afugentar rivais, mas, desde que viera da tropa e de lá trouxera aquelle ar desdenhoso de feliz D. João, aprendido no convívio dos camaradas presunçósos e mulheres de vida airada, parece que as enlouquecia.

Acostumado a ajustar a farda, como apertava bem a cinta de lã preta ou carmezim, que parecia trazer espartilho, o démo do rapaz!

Os sapatos com o lustro bem puxado, que pareciam de verniz; o chapéo garbosamente descahido sobre a esquerda; a ponta do cigarro atraz da orelha; e o lenço, com flôres e uma legenda bordadas a côres vivas, a sahir da pequena algibeira da jaqueta, as mais das vezes levada ao hombro; o Manoel era na verdade a nata da rapaziada do logar.

No meio dos outros, com as suas caras rapadas de lôrpas, valentes mas sem a elegancia dos gestos disciplinados pelo exercicio regular, o seu pequeno bigode de cidadão retorcia-se aos domingos com uma petulancia irresistivel.

Nas feiras e romarias, firmado no varapau metido debaixo do braço, toda a vaidade satisfeita a brilhar-lhe nos inquietos olhitos garços, desafiava toda a concorrencia desagradavel. Ás raparigas iam-se-lhes os olhos nelle, e mediam-se com o rancôr de rivalidades latentes.

E valentão!?–como aquilo poucos! E, como sempre, era a superioridade material da força e da coragem o que mais o fazia valer aos olhos de primitivas femeas, oferecendo-se orgulhosamente ao vencedor, ao macho forte e soberbo.

Quando o Manoel, com um rapido piparote atirava para a nuca o chapéo móle de largas abas, dava um passo atraz, fazia girar o varapau em sarilho sobre a cabeça, e torcia a bôca espumante num esgare de raiva… podiam fugir delle!

Contavam-se na aldeia as valentias do Manoel com o mesmo entusiasmo e ufanía com que se contariam as de um heroi da historia, um heroi autêntico, de que a tradição nos deixasse o nome e a memoria de largos feitos.

Uma vez era todo o povo de Infias que se juntara para o desafiar, raivosos por uma questão de mulheres de que o Manoel era afortunado protogonista, e que elle _enfiara_ pela serra abaixo–que até parecia que o vento os levava.

«Ó Manoel, lembras-te?…

«E daquella vez na romaria da Senhora dos Verdes?…

«E na feira, quando foi da compra dos meus bois?!…

As perguntas, as respostas, as diferentes versões e comentarios, envolviam o Manoel num côro de louvôres, que elle recebia mal disfarçando a vaidade num meio sorriso modesto emquanto ia enrolando o cigarro entre os dedos fortes onde brilhava um anel de cobra, o encanto e a inveja dos mais rapazes.”

“Quatro novelas” – Anna de Castro Osório (1908)


sr. António Bocca Negra
“O que Pechincha não sabia era quem era o sr Antonio Bocca Negra. Era uma espécie d’animal muito pouco para inimigo. Era um Hércules mas em vez de valentia tinha brutalidade. Alto robusto patriarcha da sua tribu fazia se respeitar como o primeiro. Todos tremiam d’elle, era amigo da mulher e dos filhos mas só se fazia a sua vontade. Era fanático em pontos d’honra e adorava os frades e os conventos. Chamava a estes liberaes os phelisteus mas altar e throno tinha os no coração. Em fim era um carvalho velho que não dobrava. Era chamado por arbitro em muitas questões e a sua opinião era uma escriptura. Muitas vezes diziam:- Foi uma providencia que a este homem lhe desse para bem, aliás com aquelle génio já tinha mortes ás costas! – Apezar d’isso quando se via mettido n’uma desordem, dava bordoada a valer. Um dia sósinho varreu uma feira com um varapau escapando-se sem ninguém lhe poder tocar nem com um dedo.

Era esse o Minotauro com quem tinha que se haver o fransino e debil Pechincha.”

“Memórias da mocidade” – Francisco Soares Franco Júnior (1867)


Pescador Pedro
“Mas como todos estimavam o rapaz pelas suas excellentes qualidades, não iam os gracejos até ao ponto de o offender, o que elle tambem não supportaria porque era valente e bom jogador de pau”

“Frutos de vário sabor” – F. Games de Amorim (1868)


Tibério
“Não haver romaria, não se festejava santo, não havia feira grande em que Tibério não armasse, fazendo zunir na atmosfera carregada de poeiras e de sol o varapau ferrado de que andava sempre munido”

“Mosaicos : Contos e encontros” – Carmen de Figueiredo (1980)


O Esgalhado
“O Esgalhado é um rapaz trigueiro, mais alto que baixo, fino e sucado de carnes, bem lançado, tirado das canelas. Tem no rosto perfeito, que a patine do sol e do vento recrestou, dois olhos vivos, muito vivos, destes que olham a direito, com insistência, quási impertinentes. E sobre o lábio um buço leve de guias arrebitadas. Pulsa-lhe a agilidade no corpo musculoso. Nado e criado lá pela Beira marítima, entre a Estrela e o Mar, conjuga em si as duas graças portuguesas — a serranil e a marinheira.[…]
Com que olhes hão de olhá-lo as moças da sua terra!…
Adivinha-se ali um jogador de pau. Um destes faias da aldeia, lestos e atrevidos, que armam o reboliço numa feira.
E como é seco, esbelto, ardido, airoso, não lhe vai mal, por minha fé, aquele nome de Esgalhado. Enfim um destes puros sangues lusitanos, já tão raros, estatuado pela força da terra e pelo sonho ardente das mulheres, e cuja maquette devia figurar num museu étnico”

“Memórias da grande guerra” – Jaime Cortesão 1919


Francisco
tinha Maria os seus vinte e três annos —em que n’uma romaria se en- controu com um gentil rapaz de Santa Eulália de Barrosas, e sentiu, pela primeira vez, palpitar o coração com desusada força.
Era Francisco o mais guapo moço, jovial cantador ao desafio, destemido jogador de páu, e habilidoso carpinteiro, de todas aquellas cercanias. Sò tinha um defeito… Era um mãos-largas, vintém ganho —vintém gasto!

“Contos” – Pedro Ivo 1874

Conto: António Fogueira, Rio Tinto e o Fanfarra

Conto de Teixeira de Queiroz, com cena final de luta com varapau.
Pode-se ler neste link, o conto completo, ou aqui, a parte final com o combate.

VII

O António Figueira saiu, ao escurecer, de Viana, com ideia de chegar, na manhã seguinte, à sua freguesia, fazendo, assim, todo o caminho de noite. Não havia luar e as estreitas, quase tão vivas como nas límpidas noites de inverno, difundiam na amplidão luz suficiente para, a pequena distancia, se poder apreciar o volto das pessoas, a grandeza das árvores e dos penedos próximos. Quando ele saiu de Viana, com muita gente conhecida, despediu-se da Mariana Ripa até à próxima feira dos nove. Pelo caminho, os seus companheiros, foram derivando para outros destinos e, quando era pela volta da meia noite, o Fogueira caminhava só, destacando-se, no silencio ambiente, como uma cor viva se .destaca num fundo escuro, o saliente resfolgar da sua égua, que trotava num passo moderado e cadente, batendo com as ferraduras nas pedras avulsas do caminho. A estrada que seguia era estreita, orlada de árvores copadas, o que aumentava a escuridão … O Fogueira, apesar de não ser medroso, sentia, em volta de si, um certo vazio que lhe dava uma sensação de desamparo… de abandono!… Inconscientemente principiou a pensar num mau encontro, a lembrar-se que lhe podiam vir ao caminho alguns ladrões, se por acaso soubessem que o seu cinto ia tão bem recheado de soberanos ! Quando se surpreendeu dominado por estas ideias extravagantes, sorriu incredulamente… Bem sabia não haver por ali ladrões, e que somente, uma ou outra vez, se roubava uma poçada de água, para valer a algum campo de milho, que se mirrava de secura. Mas dado mesmo o caso que lhe aparecesse um ou dois ladrões!? Não era ele um dos melhores jogadores de pau das feiras minhotas?! O seu Iodam não tinha uma choupa de romper um peito?! A sua égua não era bastante impetuosa, para abrir caminho por entre um regimento de soldados, e bastante fugideíra, para não ser pilhada pelo melhor cavalo a toda-a-brida?!… Porém, como lhe veio esta ideia esquisita de se lembrar de ladrões?! Gomo diabo lhe deu a caturrice para ali?! Não sabia, mas a verdade é que lhe desagradou o encontrar-se a pensar em tais amigos quando era certo, que tinha o cinto atulhado de dinheiro. .. No momento em que elle se sorria doestas asneiras, chegava a um pequeno largo, onde havia uns carvalhos antigos, cuja ramagem copada lhe deu facilmente uma impressão amedrontadora, como a de uma igreja, ou de um cemitério que, numa estrada rural se encontra desprevidamente! O silencio aqui era simplesmente interrompido pelo som metálico de uma pequena fonte, que pingava junto de um muro. O Figueira sentiu-se neste momento mais isolado, e, talvez, em virtude da impressão desagradável que este sentimento de desamparo lhe causou, atendeu com mais inteligência a tudo que o cercava. Um tremor incaracterístico  mas enérgico, irradiou-lhe em todo o corpo; porque dois homens, dando largas passadas de tragédia  de paus argolados levantados ao ar, se lhe oposeram com arrogância, dizendo com voz soturna:
—Faça lá alto, ó seu amigo!
A égua susteve-se logo, desconfiada, com um olhar inquieto, a cabeça levantada, as orelhas espertas! O Fogueira estremeceu involuntariamente, um formigueiro rabiou-lhe ao longo da espinha, ficando numa espécie de espasmo, depois de ouvir aquela voz rouca, atinhada, uma voz de timbre seu conhecido, mas que, neste momento, não podia dizer de quem era… Toda esta cena rápida e inesperada, deu-lhe uma ideia pavorosa de cousa sinistra, da intervenção do demónio nos sucessos da sua vida, de acontecimento só explicável em historias de bruxas!… Porém, recuperando a serenidade, reconheceu que eram realmente dois homens mascarados, que se lhe opunham no caminho e que deveria por força ser, para o roubarem… Seguindo o próprio instinto  tirou o seu pau ferrado de entre a perna e o albardão, levantou-o para eles com arrogância e dizendo «qual alto, nem meio alto!» esporeou energicamente a égua  para romper com velocidade por entre os dois mascarados. O animal, que era fino e sensível, deu um corcovo, indo esbarrar-se contra uma corda que estava intencionalmente atravessada no caminho e, o Fogueira, ficou desmontado; mas com tanta felicidade que, quando os agressores iam a cair sobre ele, encontraram-no de pé  fazendo-lhes face, com o pau em guarda, enquanto que, a distancia, se ouviam as ferraduras da sua égua batendo nas lages da calçada.
Este momento de silencio foi tenebroso! Havia dois homens contra um, na escuridade indecisa de um caminho orlado de árvores  que se definiam no ar com os seus enfolhamentos volumosos e espessos! O Fogueira esperava um ataque simultâneo da parte dos salteadores, e já calculava defender-se, de costas contra o muro, sustentando-se assim até poder bimbar o primeiro, para depois se encontrar com o segundo que acometeria com força. Mas um dos mascarados, baixando o pau com desdém, disse numa voz trocista de compaixão, para lhe mostrar que o tinha compreendido:
— Home, não te faças fino, que te enganas. Deita ai a marmelada que levas no cinto e vai-te c’os demónios, se não pode-te sair a cousa torta!
Esta intimação irónica e desprezadora ofendeu, mais do que tudo, o Fogueira, insuflando-lhe uma energia raivosa contra os dois agressores. Não o conheceriam eles?! Não saberiam que era o melhor jogador do pau das feiras minhotas?!— disse consigo este sanguíneo estouvado! Pois estavam em momento de o experimentarem!—pensou num silêncio rancoroso e indomável. E logo depois, num ímpeto leonino e sem táctica  cresceu agressivamente para ambos, tomado de um frenesim tão diabólico, que os fez recuar alguns passos neste primeiro ataque. O Rio Tinto disse-lhe com uma voz já menos disfarçada, aparando-lhe as pauladas: —Ah! queres à valentona?!… Vamos então lá a ver!…
Houve um instante de hesitação, um momento instintivo de pausa, em que de parte a parte se pensou rapidamente em acometer com a maior energia. O Figueira era bastante conhecido, como jogador temível. O Rio Tinto e o Fanfarra sabiam-no melhor do que ninguém; porque muitas vezes se tinham encontrado emparceirados em desordens e, talvez neste momento, se lembrassem que, um deles, devia à presteza e generosidade deste valente rapaz, não ter ficado morto no S. Sebastião de Vila Nova!… Porém, apesar disto, no momento actual, eles eram dois contra um! A enorme sede de vingança, e a natural maldade e valentia incontestada dos dois salteadores, davam-lhes reconhecidas vantagens. O Fogueira, ainda que fora de si, já tinha conhecido pela guarda dos adversários que eles sabiam do negocio: — reconheceu que eram jogadores. Mas o seu natural impetuoso e imprevidente levou-o a sair da defesa, com o fim de os atacar, e com a ideia de fazer a um deles, a sua finta predilecta á bôcado estômago; empregando, ainda assim, muito olho, para não perder a protecção do muro, que lhe guardava as costas. Na soturnidade da noite, profonda e cava, por entre os espessos troncos de carvalhos foIhosos, no meio do silencio imponente das montanhas vizinhas que se levantavam na amplidão, ouviam-se os estalidos secos e breves dos paus, batendo uns nos outros, por entre as respirações de cansaço cortadas de palavras injuriosas e cheias do rancor dos combatentes! No escuro, a que eles já tinham habituado os olhos, os seus corpos furtavam-se habilmente aos golpes, saltando de lado para lado, sempre numa incerteza de posição! O Fogueira, como era só, precisava empregar maior esforço e tal raiva que, no fim de cinco minutos, fez saltar o pau do Rio Tinto, para lhe atirar a pontuada ao estômago! Este porém, como lhe conhecia bem o jogo, deu um largo salto de recuo e, em vez de ir buscar outra vez a sua arma, meteu rapidamente a mão ao bolso interior da vestia, tirando a sua comprida navalha que abriu de pronto e disse na voz natural:
—Agora há de ser com esta. Ataca com força rapaz! — gritou ao companheiro.
Principiou um desses momentos terrivelmente sinistros, em que entre dois homens se estabelece esta negra ideia— de se matarem um ao outro! O Fogueira conheceu imediatamente o perigo, quando viu faiscar a lamina da navalha, que mesmo à luz tíbia das estrelas brilhara aos seus olhos, como um relâmpago! Nesta luta obscura, que se passava no silêncio de uma noite de primavera e na tranquilidade de um caminho rural, havia muita ferocidade condensada I O António Fogueira tinha, até ali, sustentado os ataques dos adversários; mas, agora, para se furtar á navalha de um assassino, só o poderia conseguir inutilisando o Fanfarra, que o ensarilhava de cada vez mais, fazendo-lhe um jogo de mil demónios I Por isso, com a ligeireza de um cabrito montez, saltava para a direita, para a esquerda, para a frente, para traz… evitando os dois inimigos que o procuravam com pertinácia … com fúria! O Rio Tinto praguejava, ameaçava-o com voz rouca… quasi natural … O Fogueira te-lo-ía conhecido em outras circunstancias; mas, em momento tão apertado, nem reflexão tinha para isso… As forças eram desiguais… o filho da Engrácia enfraquecia-se visivelmente, e a ele, que era corajoso, veio-lhe a ideia de um socorro providencial… Sentia-se já extenuado e agredido de cada vez com mais tenecidade, com mais rancor, com maior ímpeto  Aquele que o procurava por todos os modos, para o anavalhar, pronunciou com voz clara, já sem pretensões de disfarce:
—Agora Fanfarra, deixa-me c’o ele!…
E logo em seguida, o Fogueira, sentiu-se abraçado pelo seu inimigo, a quem desmascarou no instante em que a comprida navalha lhe entrava no coração, rasgando-lho com tal força, que só teve tempo de dizer num suspiro final:
— Ah! ladrão de Rio Tinto, que me matastes!
Foi este o último grito de angustia e as ultimas palavras que proferiu!… O seu corpo deixou-se cair no chão, desfalecido, com os braços pendentes e o sangue a golfar-lhe pela ferida e pela boca! Ainda teve alguns movimentos convulsivos, acompanhados de um rouco respirar stertoroso, com borbulhões de espuma sanguínea pelo nariz! A sua energia ainda manifestou um instante de louca reabilitação, pretendendo, aquele corpo moribundo, levantar-se sobre os joelhos! Mas a final caiu brutamente, ficando exânime, insensível, de bruços sobre a terra!…

O Rio Tinto e o Fanfarra conservaram-se, durante um longo minuto, a olhar para o cadáver, silenciosos, estúpidos, numa impotência inexplicável, quase sem poderem fugir! Sentiam-se agora mais covardes, mais irresolutos, depois de consumado o crime! Não tendo uma precisa compreensão das circunstancias, esperavam, um tanto passivamente, qualquer castigo que viria do alto, de uma implacável região de justiça, para os punir!… Alguém que, por casualidade, os tivesse visto, poderia aproximar-se sem que eles se escondessem ; pois que, durante este minuto sinistro, conservavam-se sisudos, calados, a olhar um para o outro, com os braços pendentes!… Mas, logo depois, o Rio Tinto, que era mais perverso e malvado, recuperando com certa prontidão a sua podre consciência, disse, em voz insultante, para o cadáver:
— Ora ai tens! … É assim que se ensinam os pimpões!…
E permanecendo algum tempo com o ouvido á escuta, para que alguém se não aproximasse inesperadamente  observou em seguida ao Fanfarra que, dominado por um terror supersticioso, escutava o som metálico da agua da fonte:
— Não tenhas medo… Não é ninguém… É ali a pingar…
Porém, como o Fanfarra, ainda se conservava nesta insensibilidade estúpida e incompressível  o Rio Tinto despertou-o dizendo-lhe, com um aceno imperativo de cabeça :
—Então?!
O outro troquilha encolheu os ombros, com certo desleixo, indicando que fizesse ele o que quisesse, que estava pronto para tudo… O assassino do Fogueira, dando movimentos desengonçados ao tronco e à cabeça, proferiu com certa ironia feroz e temível, condenando aquele estado de arrependimento:
— Ora põe-te com aquelas. Talvez ainda lhe tenhas medo. Olha que já se não mexe… —concluiu impelindo o cadáver com um pontapé.
E, logo, curvando-se sobre o corpo ainda quente, desaflvelou-lhe o cinto que suspendeu no ar, tilintando escarnecedoramente com o dinheiro, e rematou numa voz de contentamento miserável:
— Ouve-los? Cà cantam?! Fazem um certo arranjo.
O sangue ensopava a terra, jorrando em borbotões ruidosos pela boca do cadáver e pela ferida! O Rio Tinto, tendo guardado o roubo, observou com modo mais familiar, pondo a mão no ombro do companheiro, que permanecia na mesma aparente insensibilidade:
—Agora… pernas para que vos queremos. Toca a andar, que pode vir por ai algum patrão!…

Retrocederam pelo mesmo caminho, primeiro num passo rápido, depois a fugir, o Fanfarra atrás do Rio Tinto. Tomaram à esquerda, por um atalho pouco frequentado, que os devia levar, através de uns montes… a outra estrada… O Fanfarra, quando já estava mais seguro de si, parou subitamente, para considerar:
—Olha lá… Ficaria ele bem morto?!
O Rio Tinto certificou-lho do seguinte modo:
— Deus te dê mais vida do que ele tem!
Mas o Fanfarra, visivelmente preocupado com esta ideia, como estavam muito perto disse:
— Home… ainda é escuro… Voltemos a espreitar se ele se mexe!
E voltaram num passo rápido, melhor seguros de si… com a alma mais desanuviada e perversa. Ficaram a pequena distancia, de traz do muro, escutando… O silencio prolongava-se preguiçosamente na profundidade do vale. Somente o pingar monótono da fonte próxima perturbava este alvorecer indeciso, que os pássaros já principiavam a alegrar. Os assassinos, para se certificarem positivamente da morte do Fogueira, e como a escuridade ainda os protegia, saíram do lugar onde se tinham prudentemente escondido e aproximaram-se do cadáver, com certa ousadia é confiança. O corpo continuava a jazer exânime, de bruços sobre a terra! Não tinha o menor sinal de vida — nem sequer perturbava o silencio da noite, com a respiração ténue do moribundo! O Rio Tinto, empurrando outra vez o cadáver despresivelmente com o pé, pronunciou com um sorriso cínico:
—Estás bem morto I Pagaste-las todas. Já não comes mais broa.
O Fanfarra, que era menos animoso, observou-lhe, Com certo modo urgente:
— Home, deixa-o lá, coitado! Fujamos nós, que já se vai vendo!… Pode vir por ahi algum demónio…
O Rio Tinto concluiu com uma entoação trocista:
— Aposto que tens pena dele!… Ou é medo?!…
Não tenhas medo; nem ele, nem os que podem vir te prendem. Se algum pimpão ai aparecesse agora, fazia-se-lhe o mesmo e eram dois que ficavam estendidos.
Depois afastaram-se do cadáver e do caminho que tinham trazido de Viana, por atalhos seus conhecidos. Dali a poucos minutos, transpunham o cabeço sobranceiro à estrada. O Rio Tinto concluiu com serenidade:
— Agora é que é bom dar á perna, que ela vai-se mostrando…

Referiam-se à manhã que rompia, com uma claridade roxa. Era o alvorecer de um formoso dia de sol. As caminhadas dos montes circunvizinhos ainda se esfumavam indecisamente no azul; porém, o tremulusir das estrelas que fora, durante a noite, vivo e inconstante  como o dos brilhantes nos bailes da opulência mundana, principiava a extinguir-se. O ar sadio e oxigenado dos campos, dava ao corpo dos madrugadores a sensação macia de uma ligeira humidade refrigerante. Dos pinheirais e das matas de carvalhos, já saiam os galos ralhadores, com o seu voou largo, anunciando, por cima das penedias, o dia que chegava. Os braços enfolhados das árvores nascidas nas eminências, recortavam-se no céu, tenuemente anilado, manchando-lhe a pureza. A modo que o dia se ia iluminando melhor, as árvores e as massas de penedos destacavam-se, com mais precisão. Da cor roxa primitiva, o céu, foi insensivelmente passando para a cor de rosa, depois para o azul plúmbeo, por fim colorindo-se todo por igual, quando as estrelas já se não percebiam, adquiriu o verdadeiro tom de azul ferrete, uma cor húmida e enérgica, própria das manhãs de primavera no clima do Minho. O nevoeiro ténue, como um gaze lançado sobre os montes e os campos, foi se pouco a pouco condensando no fundo do vale. A vida laboriosa dos trabalhadores ia manifestar-se nos caminhos e nas encostas. Seria um dia alegre como todos os dias, — os milhos continuariam a crescer, e as poucas cearas de centeio pintar-se-iam com o amarelo da ganga… Porém, neste pequeno largo plantado de velhos carvalhos anosos e onde uma pobre veia de agua pingava continuadamente, estava disposta uma surpresa desagradável, para o primeiro madrugador da aldeia. Era o cadáver de um rapaz de vinte e tantos anos, assassinado com uma facada, que lhe entrara no coração! O seu corpo estava de braços, no supremo abandono da morte! O sangue saído da ferida, molhava a terra e manchava-lhe a cara. E, a vivificante luz da manhã, o orvalho que refrigera, as cores da paisagem que inebriam pela complexidade de tons… essa força omnipotente que vem da natureza, pairava sobre o morto, com um cepticismo irónico e dominador!…

“Antonio Figueira” – Teixeira de Queiroz 1882

Núpcias ao relento

Mais perto de mim (tão perto que estendo a mão e toco a sua lembrança carnal, a cara seca e a barba crescida, os olhos magros que em mim se repetiram) aquele avô guardador de porcos, de cujos pais nada se sabia, posto na roda da Misericórdia, homem toda a vida secreto, de mínimas falas, também delgado e alto como uma vara. Este homem teve contra si o rancor de toda uma aldeia, porque viera de fora, porque era filho das ervas, e, não obstante, dele se enamora minha avó materna, a rapariga mais bela do tempo. Por isso meu avó teve de passar a sua noite de núpcias sentado à porta da casa, ao relento, de pau ferrado sobre os joelhos, à espera dos rivais ciosos que tinham jurado apedrejar-lhe o telhado. Ninguém apareceu, afinal, e a lua viajou toda a noite pelo céu, enquanto minha avó, de olhos abertos, aguardava o seu marido. E foi já de madrugada clara que ambos se abraçaram um ao outro.


“A bagagem do viajante” – José Saramago (
1973)

Ilustrações de “O Malhadinhas” de Aquilino Ribeiro

Hoje, 25 de maio, dois dias antes do exato cin­quen­te­ná­rio da morte do meu Aqui­lino, fica­ria mal se não dei­xasse aqui um livro dele. Mas deixo um livro que ele nunca escre­veu como livro, mas que se tor­nou… num dos livros mais famo­sos dele.

O Malha­di­nhas come­çou por ser um conto, inte­grado no volume Estrada de San­ti­ago, que viu a luz do dia em 1922. Mui­tos anos depois, em 1958, volta a apa­re­cer num outro volume que tem dois títu­los, de outras tan­tas nove­las: A Mina de Dia­man­tes e O Malha­di­nhas. Só mais tarde, devido ao enorme sucesso da obra, surge com o nome a ocu­par a fachada do livro.

O Malha­di­nhas é uma aven­tura da vida. O homem exis­tiu, viveu e a his­tó­ria foi con­tada ao Aqui­lino por aquele meu bisavô que já apa­re­ceu aqui por várias vezes. Dei­xou des­cen­den­tes, um dos quais (a neta, salvo erro) foi a enter­rar em Vila Nova de Paiva (o aju­den­gado nome que deram a Bar­re­las) há pou­cos meses.

A his­tó­ria do almo­creve é con­tada na pri­meira pes­soa, coisa que ao autor não deve ter cus­tado muito. Antó­nio Malha­das, o pro­ta­go­nista do longo monó­logo que é a atri­bu­lada his­tó­ria da sua vida e que per­corre um mundo que vai de Aveiro, onde com­pra sal, a Bar­re­las, onde o vende, tendo os seus diver­ti­men­tos em cada porto, que é como quem diz em cada local de per­noita, começa por ser real e passa a fic­ci­o­nado, tendo como resul­tado uma mis­tura onde se encon­tra tam­bém o autor. Não é sem­pre assim?

Homem capaz de juras com quan­tos den­tes tem; e de men­ti­ras que dizia com a afli­ção de um credo na boca, é de boa cepa, mas puxado ao exa­gero, de exal­ta­ções rápi­das, per­dões ime­di­a­tos, sonhos gran­des, peque­nos fei­tos e cora­ção puro. Mais do que isso, exí­mio no jogo do pau, con­se­gue arran­car todos os botões do colete do adver­sá­rio com uma pequena nava­lha enquanto com ele com­ba­tia. Ao fim de um ror de tempo a mane­jar o vara­pau, quando o bru­ta­mon­tes lhe pro­põe o empate, logo Malha­di­nhas lhe reco­menda que pro­cure pelas abo­to­a­du­ras, das quais nem uma tinha, pro­vando que o podia ter ferido e morto tan­tas vezes quan­tas as casas do colete.

Há quem diga que Aqui­lino é difí­cil de ler. Qual quê! Difí­cil é dei­xar de o ler, quando se entra a sério na obra. Olhem lá como Malha­di­nhas remata uma parte da his­tó­ria em que nos conta os amo­res anti­gos, antes de ter sacado, por maus modos e con­de­ná­veis méto­dos, a prima que lhe havia de dar mais uma dúzia de filhos, depois de com ela ter casado à pressa face a um padre teme­roso. Pois o Malha­di­nhas conta-nos as aven­tu­ras de saias e remata assim: “Ricos tem­pos em que era capaz de tais Áfri­cas, ricos tem­pos”. E as Áfri­cas, como sabe o Manuel Fon­seca melhor do que vocês, e eu melhor do que o Manuel Fon­seca, são a aven­tura, a des­co­berta, a liber­dade, os hori­zon­tes lar­gos tudo na mesma pala­vra, que assim se faz poe­sia. Mas só quem sabe.

Vai o tempo, fica a sau­dade, o Malha­di­nhas reforma-se do jogo do pau a insis­tente pedido da sua que­rida mulher, Brí­zida. E ele, que é assim des­crito “Danado aquele Malha­di­nhas de Bar­re­las, homem sobre o mea­nho, reles de figura, voz tão untu­osa e tal ar de sisu­dez que nem o pró­prio Demo o jul­ga­ria capaz de, por um nonada, cri­var à naifa o abdó­men dum cris­tão” acede à mulher e prima, por quem tanto lutou e tanto penou. Pode mor­rer na paz de Deus, sem mais ter de andar a monte, a fugir.

O amor é que vence tudo, já dizem os enten­di­dos e quem sou eu para os des­men­tir. Assim é nesta his­tó­ria tam­bém. E se acaso con­venci duas pes­soas a cor­re­rem à estante ou à livra­ria para ler O Malha­di­nhas, já cum­pri com a minha obrigação.

Deus os guarde e bem hajam.
 Henrique Monteiro, 25 de Maio de 2013

Desarme

Serão oito horas da noite. O céo está recamado de estrellas, mas os corpos não projectam sombras, porque o luar só apparece ás nove horas. O sitio incute respeito: é o monte da via-sacra. Se fosse de dia ou o luar brilhasse, poder-se-hiam contar as cruzes que, a partir da capella, erecta no cimo do outeiro, se erguem pelo monte abaixo, numa distancia de vinte passos de umas ás outras.

Numa pequena elevação, sobranceira ao caminho, a cerca de trinta passos do primeiro cruzeiro da via-sacra, guiada a vista pelo brilho do lume de um cigarro, acabava-se por distinguir o vulto de um homem, assentado, com o pau traçado sobre os joelhos. Era o mestre carpinteiro, que esperava alli o visinho, para lhe provar a justiça da sua causa.

Quem lhe podesse ler no cérebro acharia isto: — Muito mal… não… Quinze dias de cama e nada mais… Há-de levar a sua dose, para não tornar a ter o atrevimento de levantar uma cadeira para mim!

E tão certo estava de si, que continuava philosophicamente a fumar o cigarro, esperando o lavrador com a pachorra, com que um pescador de profissão espera horas até que uma truta se lembre de vir brincar com o anzol.

Por fim lá lhe pareceu que ouvia ruido de passos, e ergueu-se. Não se enganara: era o lavrador. Subia este a ladeira apressadamente, estimulado pela lembrança do susto com que a mulher o estava esperando, quando o carpinteiro, de um salto, se achou defronte delle. O lavrador reconheceu-o immediatamente, mas não se deu por achado, e perguntou com voz cuja affectada segurança trahia o sobresalto interior:

— Quem temos por aqui ? O outro, rindo sarcasticamente, respondeu :

—Alguém que vem ver se você e homem para outro!

— E’ vocemecè, sr. José? — redarguiu o lavrador, buscando ganhar tempo para achar sahida áquelle aperto.

— Um seu criado, para o servir com umas azas de pau!… Pôde mandar dizer isto ao seu doutor, a vèr o que elle de la responde! — proseguiu o carpinteiro.

—Elle que ha de dizer? — retorquiu o lavrador, tentando levai o pelo brio.

—Ha-de dizer que nunca pensou que o sr. José viesse esperar um homem que nunca lhe fez mal, e que nem sequer traz um pau como esse para se defender.

— Pois dirá… dirá, sim senhor, mas… enganou-se! … Não traz pau ?… Faz mal, se bem que, nessas mãos de pouco valia!… Mas leva rumor e acabemos com isto, que eu não vim ca para conversar!

E, fincando um pé um pouco mais atraz, ergueu o pau. O lavrador comprehendeu que não havia compaixão a esperar, e, confiando com razão no vigor dos próprios músculos, deu um salto para deante, ao tempo que o adversário erguia o terrível marmelleiro, e estreitou-lhe o corpo com os braços. O carpinteiro, vendo-se abraçado, deixou cahir o pau, já agora inútil, e arcou com o vivinho, murmurando apenas por entre os dentes cerrados :

—Ah! cão, que me embaçaste!

Começou então uma lucta horrivel entre aquelles dois homens, ambos ainda jovens, ambos vigorosos. Depois de alguns minutos de esforços inauditos, para ver qual delles subjugaria o outro, o pé do carpinteiro encontrou uma velha raiz de árvore, que o fez cahir de costas, arrastando na queda o seu contrario. Este, aproveitando a vantagem, desprendeu um dos braços e apertou vigorosamente o pescoço do inimigo, que espumava de furor, sem exahalar um queixume. Não tardou, porém, que uma ideia horrível viesse paralysar o estorço do lavrador. Pareceu-lhe que o vencido tentava metter a mão no bolso, viu-se esfaqueado, passou-lhe deante dos olhos a imagem da mulher e a orphandade dos filhos, ergueu-se e fugiu.

“Contos” Pedro Ivo (1874)

Franceses famintos

Junho à lareira, de olhos lacrimejantes, o neto João não perdia pitada da conversa entre o avô e a mãe. Ao ouvir as últimas palavras do ancião, empinou-se, feito estaca, e atirou: 

– Eu vou com o avó!

E ali estavam, que não houve ralho da mãe nem choro das irmãs que o demovesse. Marcelo, que a princípio contrariou o desejo do garoto, embora lhe gabasse a tesura e a amizade, acabou por ceder quando o ouviu dizer, muito sério, que queria ir ver o pai e o tio, e sempre podia ser um arrimo para o avó, quanto mais não fosse para lhe cuidar do burro.

Espigado e comprido como o tio, ao rapaz todos davam a idade de treze ou catorze anos, quando andava ainda nos doze. E que adorava o tio e o avô, ao primeiro por não haver homem mais valente a combater franceses, e ao segundo por ser o mais emérito jogador de pau da região, sabia-o a garotada da aldeia que lhe escutava as loas com que enfeitava os seus heróis familiares. Ele próprio. treinado pelo pai e pelo avó na arrochada, já pedia meças a moços mais velhos e encorpados, que esta arte era como a de artesão a passar de pais para filhos e netos. 

O velho ainda sorria ao recordar estes factos, satisfeito por ter trazido o rapaz consigo – via-se ser um Marcélo autêntico, ao melhor estilo do quem sai aos seus não degenera -, quando parou na berma da estrada e retirou dos alforges do asno dois nacos de toucinho frito para reconfortar os estômagos.

Tinham feito quase todo o percurso da gândara entre a Mealhada e Souselas – para além do pinheiral bastio, já vislumbravam umas mamoas escalvadas, que a davam por finda com o tempo a negacear entre um sol pálido e nuvens de chuvisco, sem sombra de percalço a empecer-lhes o caminho. E mal amesendaram na ribanceira da estrada, logo os sarilhos lhes surgiram, com os dois diabos postados a dez passos entre o arvoredo. Foi o rapaz que os lobrigou e, em voz murmurada. para não causar alarme, chamou a atenção do velho.

– Olhe, avó, acolá, dois vagabundos de olhos postos em nós. Seguiu o Marcêlo a olhada do neto. Avistou os homens. mais pele do que osso, de rostos esquálidos e olhos encovados, mais mortos que vivos, mais implorativos que hostis. Pelo azulado das vestimentas, feitas em farrapos e cobertas de sujidade, descortinou-lhes a qualidade de militares. À vista, não traziam armas. Um deles. amparado a um tronco de pinheiro, segurava o outro pelo sovaco. de roupa manchada de sangue seco no peito. 

À cautela, o velho agarrou no cacete de marmeleiro e disse ao rapaz que não tivesse medo, que os homens não podiam com uma gata pelo rabo. Depois arvorou um ar prazenteiro e saudou:

– Olá, amigos. são servidos? 

Sem sair do local, um deles implorou: 

-Faim, Faim- ao mesmo tempo que levava a mão a boca em gesto de comer. 

-Ó avó, não são dos nossos, pelo falar, são franceses. Vamo-nos a eles, antes que nos matem – alarmou-se o rapaz, a pegar no porrete que tinha a seu lado. 

– Calma, meu neto, são apenas dois homens esfomeados. um deles à beira do colapso, sem forças para nos inquietarem. Larga o marmeleiro, vai ao alforge do asno por mais comida e deixa o caso comigo. 

O miúdo obedeceu, enquanto o avô, descansando o corpo sobre o pau debaixo da axila, fazia gestos amigáveis aos intrusos, para que se aprochegassem dele que, onde comiam dois, comiam quatro. O que trazia o outro ao dependurão, encostou-o ao pinheiro e avançou vacilante, mas de olhar voraz para as taliscas de entremeada frita e para a broa que o rapaz entregava ao avó. 

-Merco, merci – balbuciou ao receber a comida da mão esquerda estendida do Marcêlo, de mão direita no pau que o amparava, a jogar pela cautela, não fosse o desgraçado passar-se dos carretas e pensar em atacá-lo.

Comeu avidamente, via-se que pelo estreito nada lhe tinha passado nos últimos dias. De seguida. voltou para junto do parceiro, com uns restos nas mãos. Mas o pobre diabo nem forças teve para engolir. Estava nas últimas, na opinião do velho, que não perdia um gesto do que se passava diante dos olhos.

O homem voltou de olhar esgazeado e implorativo, de dedo apontado ao odre dependurado no arção do burro:

-De l’eau, par Dieu.

Pelo gesto. Marcêlo entendeu o pedido. Disse ao neto que lhe chegasse a água. O rapaz hesitou, percebia-se que discordava do avó, a dar de comer e de beber aos inimigos contra os quais o pai e o tio arriscavam a vida. 

– Não tenhas medo, João. Aprende que água e pão nunca se nega a um cristão, mesmo nosso inimigo – sossegou o avô.

O ferido ainda engorgitou uns goles de água que o companheiro lhe esguichou na boca entreaberta. Recusou a comida. incapaz de engolir. Recuperado o odre, o velho entendeu que eram horas de abalar. Montou o neto no burro e despediu-se com afabilidade: 

– Fiquem com Deus, que mais não vos posso fazer. Ainda tenho muito caminho pela frente. 

O que se sustinha nas pernas lançou-lhe um olhar de gratidão. Depois, desesperado. ficou a chorar debruçado sobre o ferido. 

O neto ia zangado com o avô. Cem passos andados increpou-o: 

-Ó avô. porque é que não os matámos? Ali, à mão de semear, foi uma pena não o fazermos. Duas cacetadas e estavam feitos. 

O velho olhou o neto nos olhos e disse-lhe:

– Vais responder à minha pergunta, mas de mão na sua consciência, que já és um homenzinho. Achas que te sentias honrado e destemido a matar dois homens a cair de fome. um deles já nas vascas da agonia, praticamente indefesos? 

O rapaz embezerrou e manteve-se na dele. 

– Não é o que eles fazem à nossa gente? Não nos pilham e matam sem cuidar de ser velho, mulher ou criança? Não são eles que vêm à nossa terra fazer-nos mal? 

Marcêlo percebeu que tinha no neto um antagonista difícil de convencer.

– Não respondeste à minha pergunta. E não respondeste porque sabes que tenho razão. Não se mata quem está meio morto. Fazê-lo seria cobardia, por muito que o merecessem. 

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A Paixão de Araci” – José Marques Vidal (2012)

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Vale mais a autoridade de um cavalheiro do que trinta cabos de policia

As romarias são as funções clássicas daquele povo. O pretexto ou causa é a festa de algum santo; há na véspera fogo de vistas com musica, e no dia festa de manhã e de tarde com sermões, e procissão. A ermida ou igreja é cercada por um grande arraial onde estão colocadas em carros pipas de vinho, acompanhadas de barracas nas quais se vendera doces, pão de ló, e no tempo próprio, melancias e fruta. Toda a riqueza de uma lavradeira aparece nestes dias em numerosos cordões d’oiro que lho encobrem o pescoço, e o seio, nos ornamentos do chapéu, e nos tamancos, nas cores pronunciadissimas da saia de chita, no pano fino, e no bordado das roupinhas. Os rapazes capricham no bordado dos grandes colarinhos da camisa, nas cores, também pronunciadissimas do colete, no chapéu novo, e no varapau.

É rara a romaria em que não haja alguma briga, que a força publica, chamada – cabos de policia – não chega quase nunca a pacificar. – Vale mais a autoridade de um cavalheiro, ou de uma pessoa estimada daquele povo do que trinta cabos de policia armados de quanta força lhes pode dar o código administrativo. Nunca os lavradores em desordem se voltaram contra o homem sério, que os foi aquietar, mas contra os cabos… isso são todos, e o código tem sido muita vez fustigado nas pessoas dos seus ilustres representantes.
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“Roberto Valença – Romance” António Augusto Teixeira de Vasconcelos (1848)

Náufragos na selva

Neste conto, um grupo de náufragos portugueses capturados por uma tribo, concorda ajudar seus captores em importante peleja com tribo contrária.

(…) Pouco antes de romper a aurora já percorrem a mata em total silêncio, e logo surgem à beira de um rio, junto à aldeia inimiga; e tanto se chegam às bordas do dito remanso, distante não mais de cem braças do reduto contrario, eis senão quando saem a campo muitos inimigos prestes para a luta (como se os aguardassem desde a véspera) , formados em dois compactos troços, e se lançam sobre os sitiantes em passo acelerado, do que mui surpreso, pensa João Carvalho refluir para a mata com os companheiros, mas qual. a essa altura vão já engalfinhados Turuna, Cunhambá, Impié, lperó Araruí, Guaiabi e Mairu (nominata completa dos gentios que cativaram os náufragos) e, pese a inferioridade de forças, pelejam com denodo no campo aberto a beirame do rio. Turuna, mostrando toda a chefia de que é capaz, não só se bate com desassombro  mas esforça os comandados, gritando-lhes refrões de estímulo, ao mesmo tempo em que pede aos portugueses o cumprimento da palavra empenhada no sentido de aderirem logo à briga antes que seja demasiado tarde.

Cabe ao bacharel, recém investido no galardão da coragem, pôr cobro à desesperada situação, metendo-se de peito aberto na refrega; e numa trovejante voz que põe em brios os portugueses, ordena, à carga por Santiago, que aqui estamos por brigar e não por apreciar o massacre e perda de nossos liados. A essa destemida exortação saem os quatro a campo, e praz a Deus que tão bem se hajam na investida que logo quebram as fileiras inimigas, pondo metade ao chão com certeiros golpes de varapau, que manejam à minhota, numa destreza desconhecida dos contrários(…)

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“Tratado Da Altura Das Estrelas”  – Sinval Medina (1997)

Uma mentira letal

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“O Tio Joaquim”

Conto com cena de combate a varapau.

“Entre os trabalhadores da quinta, havia um chamado António  bom rapaz, é verdade; mas que tinha um defeito, de que se não corrigia. Era mentiroso, como os que o são, e quando o não acreditavam, amontoava juras, qual mais tremenda ou de mais responsabilidade e respeito pai a um homem de bem.

E era pena; porque poucos havia tão laboriosos como ele  Era conhecido pelo— galo da madrugada—titulo bem justificado em vista do se apressava em concorrer ao trabalho: e não poucas vezes os pobres benefícios  que o seu magro pecúlio lhe permitia fazer, vinham a constar, pelos outros e não por ele  muito em seu abono e boa reputação.

O tio Joaquim, conselheiro honorário daquela republica tinha-o repreendido muito; mas aquele maldito sestro não o queria o António perder nem a bem nem a mal. Era o seu senão, que lhe acarretava não poucos dissabores e com o que não pouco prejudicava os outros.

Era num domingo, e depois da missa do dia, no adro da igreja estavam reunidos, em mó, os saloios daqueles sítios que tinham concorrido ao santo sacrifício  De fatos domingueiros, e varapaus ferrados, discorriam pelas novidades do lugar, exactamente como os nossos elegantes à porta do Marrare, ou nas salas do Grémio.

Diga-se a verdade; as Marias e as Joanas não deixavam de influir naquelas reuniões, porque não poucos eram os que ali compareciam levando em mira falar ás suas requestadas, ensaiar requebros, ou ajustar entretenimentos para as horas de sesta ou para as tardes dos dias santos.

O nosso António também não faltava à reunião, e já por mais de uma vez fizera das suas, sem consequências de maior, pelo pouco credito que tinham naquele mercado campestre as notas do nosso caramboleiro.

Havia no lugar uma rapariga que se podia chamar uma perfeição, e que fazia tanta diferença das suas companheiras, como a rosa de musgo das rosas carrasqueiras dos valados.

Era gentil e mimosa,não tinha as cores de saúde  nem aquele acerejado do sol, ou formas robustas e quasi viris da raparigada do campo; mas era mais esbelta, mais pálida  mais clara e com uns olhos tão negros, tão negros, que lhe saiam da alvura do rosto, como dois diamantes negros engastados em esmalte branco.

Vivia arredada e em recato, e não aparecia em arraial ou festa, senão de ano em ano e quase por milagre.

Chamavam-lhe—a fidalga,—e o nome casava tanto com a sua distinção de maneiras e garbo de porte, como o soar das ave-marias com os descampados das serras.

Como já se deve supor, os fragatas da terra tinham pretendido as honras de arrojado; mas debalde, porque os rejeitava, e quase todos doscoroçoados tinham desistido da empresa.

Digo quase todos, porque dois ainda lhe arrastavam a asa, um, (aqui em segredo,) era atendido e bem olhado; o outro, mais feliz, nem falar nisso é bom, mordia-se de raiva pelos desdens que sofria, e pelo pouco em que eram tidos seus requebros e paixões.

A escolha de Emília tinha sido acertada, porque o José da Avó era o mais guapo moço daquelas duas léguas em redor. Desempenado e direito como uma vara de abrunheiro, valente como um pau de carrasco, generoso e de brio, como nenhum: nem o mais pintado lhe levava as alampadas em trabalho de fazenda, em jogos de pau, ou em balaricos de domingo.

E cantigas! Sabia-as ele cantar, como os que as sabem; entoava uma desgarrada ou sustentava um desafio, mais afinado e a preceito do que muitos desses italianos em segunda mão, que os empresários nos impõem como notabilidades cantantes.

O outro pretendente não era muito cheio de não presta: mas ao pé do José da Avó ficava a perder de vista, o que não admira; porque vasados naqueles moldes não havia muitos no lugar. Ele porém, como não queria atender à razão, danava-se jurando pela pele do ditoso preferido.

Este era o estado da questão na manhã do tal domingo, e os dois rivais conservavam-se a distancia respeitosa no meio de dois grupos distintos.

Tinha saído já quase toda a gente da igreja, quando Emília se retirou, sem que lhe faltassem comentários, enquanto passava por meio dos grupos. .

—Olha a delambida, soltou dali uma das raparigas mais feias da terra, parece que vai com o rei na barriga, nem olha para a gente.

—Era o que faltava, a fidalga!

—Vai toda enlevada no seu José, tem medo que lho tirem do lance.

Nisto o nosso António  que não queria ficar atrás  também se intrometeu na conversa, dizendo com modos de quem estava corrente com os mistérios daquele circulo:

— Pois faz ele bem em perder o seu tempo, porque ainda não há muito que vi o Miguel de conversa com ela á porta de casa, e pelos jeitos que a coisa levava, não era a primeira vez que se falavam.

—Ora tu sempre tens uma língua!

—Um raio me parta se minto; tinha-me calado e feito vista grossa, mas agora ferveu-me o sangue quando a vi assim como quem queria deitar lama para a cara da gente.

As palavras de António não tinham caído no chão. José desconfiado, como todos os namorados; estivera de ouvido à escuta e não perdera nem silaba  Noutra ocasião voltaria de certo as costas ao maldizente, mas desta vez mudava o caso de figura: o ciume acreditava a voz do mentiroso e a tremer chegou-se ao pé dele perguntando-lhe com voz indecisa:

—Juras que é verdade o que acabas de dizer?

—Se é! os diabos me levem se minto; eu por mim não queria causar-te nenhuma aquela; mas assim como assim mais tarde ou mais cedo havias de vir a sabe-lo; e, verdade verdade, ela não te merece.

—Basta, lhe retorquiu o pobre José, e foi-se como um raio até onde estava o suposto arrojado.

Inútil é dizer que tinha sido tudo isto enredos e obra de António  Soltára as primeiras palavras como por demais, sustentara o dito por capricho, mais tarde para que não supusessem que tornára com a fala ao bucho por medroso.

Do outro lado do adro uma floresta de paus se levantava no ar, e já as navalhas estavam fora das algibeiras; os dois tinham-se travado de razões, e como palavra puxa palavra, tinham passado dos ditos a vias de facto e malhavam um no outro como se fosse em monte de milho.

Ambos tinham partidários  e por conseguinte a luta assumiu proporções maiores; porém por muito encarniçada que fosse entre os partidos, parecia um brinco de crianças à vista daquela em que os dois se tinham travado. Davam como quem se despedia do mundo, e como quem desejava ver estendido no chão para sempre o seu contrario.

Ao principio arrancaram dos paus e começaram a atirar as primeiras pancadas, que quase todas caíram em cheio; até que Miguel, depois de ter jogado umas poucas de sortes ao seu adversário  e como ambos estavam descobertos e só queriam dar, dissimulando uma pancada à cabeça, lhe dirigiu o pau por meia volta no ar ás pernas. Quando lá chegou já o seu adversário o tinha procurado aparar, porém tanto em mal, e tão puxada d’alma ia a contraria, que o pau colhido no meio, não o aguentou e partiu-se; e o outro não encontrando resistência no corpo de José, porque ele já lho tinha furtado, foi de encontro ás pedras do adro e partiu-se também.

Vendo-se desarmado, Miguel não perdeu tempo: correu sobre o inimigo com uma navalha e baldeou-o logo no chão jorrando sangue por uma ferida no ventre.

O assassino, apenas cometido o crime, tomou as de Yila Diogo, e a desordem começou a apaziguar se com a chegada dos cabos da terra, que tratavam de remover o ferido e de prender os combatentes.

O causador de tudo isto tinha, logo que viu tomar ao caso uma feição que lhe não supusera, procurado cocegar o motim, confessando a sua mentira, porém já era tarde, naquelas alturas qualquer intervenção seria inútil  teve pois de assistir arrepelando-se, dizendo mal à sua vida, áquela triste cena, e prometendo, com mil juras que não mentiria nunca mais; ajudou soluçando a levar o ferido para sua casa na maca, que tinham ido buscar, e acusando-se todo o caminho de ter sido ele, e só ele, o culpado de tudo, que sucedera.”

“Os contos do tio Joaquim” –  Rodrigo Paganino – 1861

Vá de malhar nos de França

Veio um almocreve do Norte e pôs-se a tartamudear em voz baixa um conto atrapalhado sobre a desgraça que o Maneta Loison levou às Caldas da Rainha. Que arcabuzaram nove soldados portugueses do Regimento do Porto lá aquartelados, por uma zaragata de vintém, começada com um beijo roubado por um francês bexigoso à mulher de um tambor carrapato e zangaralhão, mas fortalhaço e sanguinho, que saltara à bordoada ao bexigoso.”...

Vieram companheiros e vá de malhar nos de França, que todos vinham com moléstias de pele, sarnas e borbulhas, a abeberarem-se nas águas santas. Pior que feira varrida à paulada, quando os franceses responderam e se zangou um cadete de Gaia que parecia um touro de cajado nas unhas, que até nem se entende como não houve morte de homem.”

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“Razões do coração” – Álvaro Guerra (1991)

Cura portuguesa para negaças

A discussão em torno de mais garrafas de Antárctica prosseguia sobre capoeiras e capoeiragem lembrada pela rasteira que o mulatinho aplicara a indivíduo muito mais forte do que ele. O monitor contava as proezas que presenciara no Maranhão de onde provinha e por brincadeira censurava os rapazes quando duvidavam que o vendeiro por ser português não podia enfrentar um capoeira.

– Tem mondrongo que sabe o que é rasteira, rabo de arraia, cocada. Tem sim senhores. Na Bahia, onde eu me demorei antes de vir para cá – dizia o ginasta – eles de tanto viver com bamba aprendem quando moços a arte. Eles rapa um homem, dá um corta-capim tão bem como qualquer cabra de tiririca. Nem precisa ir tão longe, mesmo da festa da Penha no Rio de Janeiro vocês pode ver.

– Esses já são filhos do português, porque para ele a arma é o varapau que eles gira em torno deles como moinho. Agora como é que você quer que apareça o homem com vara grande na festa da Penha?

– Eles não vão passear com vara, mas eu vi como de repente eles pode aparecer saidos não se sabe de onde e varrer de vara em giro uma festança. Ninguém chega perto.

– Sendo assim, talvez…

– É mesmo – Interveio o sargento Evangelista –  me lembro no Rio do dono de um boteco da ladeira João Homem, que era taco na vara. Certa vez o Onofre da Balainha se implicou com ele e todos começaram a dizer “Óia português, toma tento com esse cabra, óia que ele é preverso! É melhor esperar a ronda!” Qual o quê, de nada adiantou. O português pegou a vara que estava atrás da porta, saiu do boteco e deu cabo dele. Não adiantou o cabra negacear, a vara assoviava, ia por toda parte e na terceira vez que o alcançou, ele já estava tonto. Isto porque o português estava farto de conhecer negaças sabia lidar com elas.

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“Três Sargentos” – Aldo Ney (1985)