Artigo do Diário de Notícias de 1978 sobre o jogo do pau de Abadim e o mestre Portela.
Um pouco arriba de Cabeceiras de Basto, um punhado de rapazes, orientados pelo mestre António Portela, desafiam a evolução dos tempos praticando a arte do jogo do pau — uma reminiscência do passado que em Abadim é vivificada como expressão cultural genuinamente portuguesa.
Alfredo Mendes (texto)
Armando Moreira (fotos)
Forasteiro que assente arrais em Abadim pressente num credo que o tempo naqueles lugarejos se quedou em tempos idos. Neste minúsculo povoado minhoto, tudo é antigo, rudimentar, tradicional, aceite pelos seus naturais com aparente resignação.
Duas buzinadelas bem afinadas e eis que galináceos, cavalgaduras e porcos fogem espavoridos dos córreos que nos conduzem , á entrada da. aldeia. Ai, encaixilhados nos postigos dos casebres de pedra sobreposta, os rostos das velhas de tez filigranada e solta fitam-nos com carradas de curiosidade no cochichar característico de «quem sarão, quem sarão estes»..
— A casa do António Portela?, pois não, — e as velhas mirradas de xailezinho traçado que mais se assemelha a asa de infortúnio, apontam-nos com simpatia o local preciso. Ai fomos encontrar um homem simples, modesto, de poucas falas, proprietário de umas nesgas de terras e mestre do jogo do pau em Abadim. Numa luta contra a voragem dos tempos, este homem de 62 anos tenta preservar, conjuntamente com 18 praticantes, uma arte considerada, por uns «esgrima nacional» que por outros, como «arte marcial portuguesa». A sua origem perde-se naturalmente na noite dos tempos, ficando-nos apenas na retina o conto de que «isto era praticado pelos nossos ante-passados quando atravessavam paragens pouco hospitaleira».
Nalgumas tabernas destas bandas, entre nacos de b0roa. e malgas de caldo verde, ainda se poderá escutar a crónica de combates encarniçados, que chegaram a notabilizar os homens que, em dias de romaria, com o estrugir do foguetório e dos bombos, o gemido do fole da gaita céltica, o malhão e o escorrer do verdasco, punham a festança em alvoroço com ajustes de contas. Quase sempre, os motivos destas refregas eram invariavelmente os mesmos: mulheres, questões de águas e cães.
Com destreza, habilidade e arte, o pau delgado feito de lódão era, assim, manejado com maestria segundo certas regras: varrimentos de cruz, varrimentos dobrados, corrida, jogo do meio e jogo contra jogo. Num livro de bolso datado de 1886, podem ler-se algumas delas. Relativamente ao capitulo do jogo contra jogo, atente-se nas seguintes passagens: «… se me der uma pancada oitava que venha do lado direito, devo ladear, coberto o meu lado esquerdo, e desandar-lhe uma pancada à cabeça». Depois, a jeito de conselho: «Quando estiver numa feira, devo estar atento e vigiar para todos os pontos; Se vier um homem desconhecido pela banda das minhas costas, passarei para o lado do meu amigo a fim de ficar de cara com o homem e não ser atraiçoado. Igualmente, quando de noite me retirar dalguma casa, darei, à saída da porta, uma pancada forte na soleira, sempre coberto com o meu pau para evitar alguma traição. Quando também de noite, for bater a qualquer casa, pegarei no meu chapéu e pô-lo-ei na ponta do meu pau; e, assim que se me abrir a porta, darei uma passada forte, e ao mesmo tempo meterei o pau adiante com o chapéu em cima; se casualmente vier alguma pancada, apanha-la-á o chapéu e não a minha cabeça.»
Mas nem só de cacetadas de «criar bicho» vivia o jogo do pau. Com o desboninar do tempo esta dança guerreira, que exige rapidez nos reflexos e manha, foi alastrando-se a outra regiões do País, sendo finalmente praticada como recreação e não por via de ataques ou desforras. Despontaram, então, mestres de renome, entre os quais se destacou o grande José Maria da Silveira (o saloio), menino de coro que mais tarde virou a mestre do próprio rei D. Carlos, um aficionado por esta arte, tal como o referiria O «Diário de Notícias» da época. E a própria capital foi pulverizada com os chamados «quintais», isto é, retiros desportivos onde se praticava o jogo do pau como forma de espectáculo. Ficaram famosos, até os «quintais» do Retiro da Pipa, da Travessa do Cômbro e os da Rua das Taipas Mais tarde, tiveram lugar os Saraus do Ginásio Clube Português, Lisboa. Ginásio Clube Eden Teatro e Ateneu Comercial, que tanto interesse despertaram na sociedade lisboeta da altura. Temos assim que esta forma de expressão artística genuinamente lusitana (Ramalho Ortigão foi também um esmerado praticante), conquistou a simpatia de muita gente que por diversas paragens do País vibrava com aquelas varas de 550 gramas e 1,52 metros feitas de marmeleiro, juncos, freixo ou lódão, de preferência. Era um «tau-tau» sonante, frenético, espectacular, belo enfim, constituído por saltos e piruetas, viracostas dobradas, singelos ou atravessados, pontuada, Sarilhos, guardas, pancadas, etc.
Aos praticantes, reivindicavam-se-lhes além do mais, muitas horas de treino, afoiteza e… virilidade.
Do uso e abuso a raridade de hoje
Com o perpassar normal das datas, a pouco e pouco o «tau-tau» característico deste jogo foi-se varrendo do humus nacional. Com ele, tende a desaparecer uma manifestação cultural de cunho violento que assenta sobretudo em golpes estudados e executados com uma curiosa beleza rítmica.
Num eirado da pacata freguesia de Abadim, António Portela e mais a sua escola tentam contrariar esta tendência, dividindo a sua vida entre o pau e a picareta. Ou seja: entre a pachorra de transmitir aquilo que sabe sobre esta arte e o amanho dos milheirais. São enfim bordoadas mestras dadas com gana e arreganho no esquecimento, ou a moçada destes lugarejos não se encontrasse apostada em vivificar uma arte que nos pertence, que não foi importada do Oriente para uma propaganda sensacionalista e deturpadora popularizar em troca de maquias chorudas. Não basta durante a semana medrarem empoleirados no dorso das serranias, como ainda nas horas vagas em ladeiras de suor se afoitam a praticar esta arte que, diante de nós, mestre Portela ensina á mistura com incita: «Pica!; Bate pequenino; Ah … home dum raio, arruma-lhe! Pica! Pica!» e a rapaziada folgazâ executa perante o olhar solene dos bois que moirejam próximo, o jogo ladeado, jogo da cruz, contra jogo, jogo de dois, jogo da cruz singela, jogo da cruz dobrada e jogo da feira.
De vez em quando, António Portela dirige-nos a palavra para recordar histórias do «arco-da-velha». Ah! naqueles tempos é que era, fossem lá dizer que não haviam pelas redondezas homens de rija tempera. Cuidassem isso, cuidassem isso e logo sentiriam no coiro a consequência de tão grave imprecaução. Isto nos segredou o nosso interlocutor que, de uma assentada, atirou:
— Tinha aí os meus dez anos quando fugia da beira do meu pai para, pela calada, ir aprender a jogar o pau. Depois, mais tarde, cheguei a travar muitos duelos, pois nesta zona toda a gente sabia manejar o pau e lutar com ele. Era cá um destes vícios de nos desafiar-nos uns aos outros, qu’eu sei lá! Agora, está bom de ver, as coisas mudaram. Mas é uma pena deixar morrer isto. Por essa razão, fundámos a Escola do Jogo do Pau de Abadim, filiada na Associação Portuguesa do Jogo do Pau. De qualquer das maneiras vamos tentar criar uma associação em Abadim, pois não temos local apropriado para jogar. Estou até a pensar em construir a sede deste organismo na adega de minha casa. No entanto, esta associação englobaria também teatro, futebol e musica popular, pois cá na terra não existe. Casa do Povo ou coisa com que a gente ao menos possa distrair-se um pouco. No grupo de entusiastas que oriento que vai dos 6 aos 18 anos, conto com pedreiros, guardadores de gado, carpinteiros e estudantes. Até queria ver se deixava um filho entregue a isto para que o jogo do pau não morra de vez.
Enquanto a conversa com mestre Portela prosseguia, num terreno emoldurado pelas latadas doiradas, um punhado de rapazes lutam com ardor, «para que esses senhores possam vêr como a coisa é». Os paus de lódão riscam os ares num zumbido impressionante para chocarem uns contra os outros, com toda a força que os combatentes conseguem desenvolver. Volvido algum tempo, aproveitámos um intervalo para meter cavaco com aqueles jovens de Abadim, de um Minho viçoso, pitoresco e fotogénico, onde as gentes foram forçadas a errar por franças e araganças para habitarem os «bidonvilles» sufocados pelas babéis de betão. Foi o êxodo – Contam-nos – o marchar por terras nunca dantes caminhadas, E os que ficaram? ao nosso lado, encontra-se o Luís Andrade Teixeira, de 17 anos, «guardador de vacas e de sonhos», É boieiro, e confessou-nos que o seu sonho era vir a ser arquitecto. Porquê jogo do pau?
— Bem, trata-se de uma arte portuguesa que gosto muito de praticar. Aos domingos, com os amigos, jogo ao futebol, á bisca na taberna, mas também pratico o jogo do pau, lá isso pratico. Sabem, ás vezes quando andamos assim alguns rapazes a pastar o gado nos montes juntamo-nos e então como passatempo combatemos. É porreiro.
Em amena conversa com outros jogadores ficou-nos igualmente a impressão de que pontifica entre eles a vontade firme de perpectuar o jogo do pau, Que sim senhor!, que isto é uma arte, que ainda por cima é portuguesa, etc, Foi então que dez réis de gente nos chamou a atenção: lutava com ardor, enfrentava com reviravoltas rápidas um magote de hipotéticos inimigos, numa dança simultaneamente graciosa e felina. — Sou o José Luís Teixeira e tenho 7 anos. O meu pai trabalha no campo e eu também. Nas horas vagas jogo aqui o pau com o senhor Portela. Porquê? Ora, atão porque gosto disto e além de tudo passeio de vez em quando de caminhete e como coizinhas boas; ai não… Quando for grande antes quero andar com os bois do que estudar», Caía o lusco-fusco quando saímos de Abadim, povoado minhoto onde «tudo é antigo, rudimentar, tradicional, aceite pelos seus naturais com aparente resignação». Na curva do caminho, ainda ouvimos o Mestre António Portela ordenar aos seus rapazes: «Podem picar»…
“Diário de Notícias” 31/12/1978